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quarta-feira, 17 de abril de 2024

Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!


O bairro do Pereiro foi o da minha criação, assim diria a minha mãe.

A senhora Alice tinha uma mercearia no Largo dos Capuchos, mais conhecido como o Largo do cemitério. De lá, trabalhando sem descanso, criou sozinha os três filhos.

O bairro era um lugar cheio de vida, cheio de crianças e jovens. O Largo do cemitério era o centro de todas as vivências. Era lá que jogávamos à apanhada, ao lenço, (…) à bola; de lá, por vezes, tínhamos de fugir à polícia quando o encarregado do cemitério a chamava. Queixava-se ele, e com talvez alguma razão, que a bola quando chutada por alto e entrada no cemitério partia objetos. Uma vez por outra tivemos de fugir para dentro do cemitério mesmo de noite, era uma aventura nos tempos da ditadura…

O 25 de abril teve um enorme impacto no bairro. Em primeiro lugar ele trouxe um aumento do bem-estar e do poder de compra das pessoas, com consequente benefício para a mercearia da Alice. A minha mãe passou a ir muito mais vezes aos armazéns numa velha carrinha Opel Kadett e eu passei a trabalhar mais na mercearia, o que era um problema sério para mim.

Não raras vezes a rapaziada vinha chamar-me, “Vítor, anda jogar à bola”… Grande dilema, quase sempre a bola ganhava e a mercearia ficava ao cuidado do freguês que chegasse. Aí, “Vítor, anda aviar-me”, lá ía eu… Depois voltava à bola… O problema é que a Alice detestava que a mercearia ficasse à vigilância popular, vai daí a rasoira de madeira do feijão, do grão ou do milho fazia serviço alheio ao seu fim de fabrico… Costumamos dizer bons tempos não é?

O bairro tem uma estrutura urbanística diferente do planalto, ruas retilíneas com perpendiculares, nele instaurou-se um acampamento romano como muito bem explica José Augusto Rodrigues em vídeo de O Ribatejo [veja aqui]. O bairro do Pereiro ter-lhe-á tomado nome por ser lugar de macieiras de peros, não se sabe…

A Porta de Valada já não existe, mas, a estrada para o Outeiro da Forca era a saída para as barreiras onde cheguei a apanhar pintassilgos e carrascos para a fogueira das festas de S. João. Lugares de memória…

É por esses lugares que continuo a passar, pelo menos quando faço os meus treinos de corrida. O Largo do cemitério foi alcatroado e agora tem muito mais carros do que crianças. A mercearia do Rato e da Alice também são recordações… É com alguma tristeza que se vê a queda de casas e de gentes.

Recentemente foi necessário cortar uma estrada por mais uma derrocada de um lar abandonado à sua ruína. No Pereiro as casas morrem com as pessoas… O Pereiro como a judiaria, a mouraria, outros lugares que se escapam entre os dedos da memória e da vida…

Seria interessante reavivar a memória das vivências de Santarém, a presença judaica e a perseguição aos judeus, ou os 400 anos de presença islâmica cuja mesquita estaria onde é hoje a Igreja de Santa Maria das Alcáçovas. É que a nossa identidade, dita de ribatejana, é uma agregação de povos e culturas. Mas isso faz-se com políticas públicas e uma gestão municipal e da freguesia que tragam a diversidade do passado ao presente.

Tudo isto por lembrança do Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!

Vítor Franco

segunda-feira, 18 de março de 2024

Crónica de uma corrida



A caminhada ou a corrida na natureza propiciam momentos prazerosos e úteis à saúde física e psíquica. O trail, palavra inglesa que se normalizou no mundo para significar prática em trilho, é também uma prática em que as e os atletas competem de forma muito mais saudável. Vejamos.

O contato com a natureza induz a necessidade da sua proteção, cria a sensibilidade para a sua defesa e cria uma relação quase biunívoca na qual o atleta precisa da natureza para a sua prática desportiva e a natureza precisa do atleta para a sua preservação. Deixar lixo pelos trilhos significa a eliminação do atleta.

Recentemente, a equipa a que pertenço, os Desafios Positivos D+, organizou uma recolha de lixo nas encostas e acessos à cidade, uma atividade também conhecida pelo anglicismo de plogingg. Infelizmente foram dezenas os sacos de lixo que enchemos, prova de uma população que não se respeita a si própria e de uma autarquia que prima pela debilidade nesse trabalho.

No trail a competição é muito mais saudável. Se alguém cai e precisa de ajuda, alguém vai ajudar de imediato, se alguém precisa de água ou alimentação partilha-se, se alguém se engana no caminho [como me aconteceu neste domingo por duas vezes] alguém vai a correr chamando quem se enganou. Neste domingo eu e as pessoas que não me deixaram ir por trilhos errados passámos a meta de mãos dadas!

No trail as corridas acabam em almoço convívio e várias vezes em baile. A festa suplanta o cansaço e as pernas ganham subitamente novas energias.

As pessoas participam sabendo que, regra geral, não têm prémios monetários. O prémio mais pretendido é a medalha de finisher, a pessoa conseguiu terminar. Mesmo os prémios de pódio são normalmente simbólicos em pequenas medalhas de madeira.

No caso da prova do passado sábado, o Corvus Trail foi uma ótima organização da equipa COA – Clube de Orientação e Aventura. Os trilhos imbricaram-se nas matas, bordejaram rios e ribeiras, o som da água e dos pássaros saudavam-nos e diminuíram o nosso esforço. Milhares de belíssimas flores de esteva “fugiam” dos eucaliptos e partilharam connosco as encostas semiáridas. O branco, o roxo, o amarelo e o verde pintaram encostas, aqui e ali ainda surgindo o negro de restos rasteiros de árvores calcinadas.

O equinócio da primavera está à porta, que seja um incentivo para caminhar com os Desafios Positivos. Todas as quintas, pelas 19h30, partimos da nossa sede [os D+ são uma equipa da SRO Santarém] para caminhar. A natureza espera por si!

Vítor Franco


sexta-feira, 15 de março de 2024

Vencer o medo!


A história começa com um telefonema…

– Está, Vítor?

– Sim, olá amigo…

– Tenho uma proposta a fazer-te, podemos tomar um café?

– Claro, [café marcado, nós portugueses fazemos quase tudo à mesa] lá estarei.

Chegado ao dia, lá estou. Cumprimentos de bons amigos e chegámos ao tema:

– A 17 de março de 2014 faz 100 anos que foi criada a primeira central sindical portuguesa, a União Operária Nacional, e foi aqui em Tomar, diz-me…

Como foi possível eu ter-me esquecido, pensei. Bem, afinal todas as pessoas e entidades se esqueceram: a CGTP, a UGT, a Câmara Municipal de Tomar (…), todas as entidades!

E ele explica, faz-me o contexto histórico, dá-me conta dos protagonistas e, acima de tudo, da vontade de vencer o medo da opressão e da prisão. Vencer o medo, pensei, afinal como está atual… O medo é a primeira arma de opressão, um trabalhador com medo não luta por uma vida digna, aquieta-se aos ditames, treme perante a precariedade, traz a ansiedade do fim do mês com ele… O amigo tinha razão, havia que agir.

Juntámos um grupo de sindicalistas da região e fizemos um plano de comemorações. Criámos páginas “Vencer o medo” no Facebook e no wordpress, pedimos a cedência de instalações à Câmara, organizámos debates, exposições, aliámos a história às atuais lutas laborais e à mensagem: Vencer o medo. Criámos um manifesto que a dado passo dizia:

“A fundação da primeira central foi um passo positivo que juntou as forças do mundo do trabalho numa organização comum. Foi a coragem de ir à luta que conseguiu vitórias na redução do horário de trabalho para as 8 horas diárias, na criação de seguros sociais ou bairros de habitação social. A UON dinamizou o protesto contra os especuladores e açambarcadores de bens, pela defesa da paz e contra a entrada de Portugal na 1ª guerra mundial.

É admirável a coragem daqueles e daquelas que venceram o medo, as prisões, os despedimentos arbitrários, a fome e a miséria para levantar a luta pelos direitos dos trabalhadores e da paz.”

Este ano a comemoração é pelos 110 anos, dez anos depois do centenário quase nada mudou. O medo continua a assolar os imigrantes nos campos do Ribatejo e Alentejo, os jovens que não conseguem um contrato a efetivo, os efetivos com medo de não serem aumentados no seu salário, os que tem medo de fazer greve, os que tem medo de ter medo…


Cinquenta anos depois do dia libertador o medo traz consigo a herança da ditadura… No medo o fraco ataca o fraco, ataca os imigrantes ou as pessoas LGBT, ou as negras, ou as ciganas, ou as islâmicas, ou as judaicas (…), ataca sempre os fracos vendo neles adversários, os de baixo contra os de baixo, como se vive-se numa guerra surda. O medo tolha o pensamento e aprofunda a alienação.

Há 10 escrevemos:

Cem anos depois a pobreza alastra pela população. Os especuladores são agora os da finança e da banca que dizima os recursos do país e os açambarcadores de riquezas multimilionárias crescem na explosão daqueles que só conseguem comer através dos bancos alimentares ou das cantinas sociais.

Talvez tenha sido na UON que Vinicius de Moraes se inspirou para escrever o poema “O operário em construção”…

“… E foi assim que o operário 
Do edifício em construção 
Que sempre dizia sim 
Começou a dizer não. 
E aprendeu a notar coisas 
A que não dava atenção…

110 anos depois continuamos a ter necessidade de dizer não!

Vítor Franco




sábado, 12 de agosto de 2023

Ruas cor de tijolo ou cor de sangue?




Percorro as ruas coloridas pelo tijolo “de burro”. A cidade, chamada de cor-de-rosa, tomada de sol ardente, tem cantos que surpreendem – alguns dos tempos da construção medieval. Aqui e ali surgem placas evocativas de gentes e acontecimentos passados.

A cidade e a região da Occitânia viveram talvez aquele que foi um dos primeiros massacres da história da Europa, o perpetuado pelas cruzadas da igreja católica romana sobre o povo cátaro. Como nem todas as pessoas eram do culto cátaro foi perguntado ao representante do Papa, Arnald-Amaury, como distinguir os hereges dos católicos leais e devotos. A resposta foi brutal: “Matai todos eles sem distinção de idades, sejam homens ou mulheres, Deus reconhecerá os Seus.”

Os tempos correram, dominada a região, conquistados os campos férteis e as passagens estratégicas dos Pirenéus, domesticado o povo da Occitânia e a sua língua…

A barbárie ainda haveria de revisitar a França e Toulouse em particular.

Invasão nazi da França, ocupação, assassinatos em massa, perseguições, governo traidor de Vichy…

Percorro as ruas…

Tomo o caminho do Museu da Resistência e da Deportação pelo magnífico Jardim das Plantas [imagens]. As obras da nova linha do metro obrigam a pequeno desvio.

Um pequeno monumento de colunas surge. Aparentemente insignificante uma pequena placa conta outra barbárie: a deportação de crianças judias para os campos de concentração, onde morreriam.

Percorro os nomes e as idades, uma das crianças só tinha três meses… Era Halpern, ela só tinha três meses; Elizabeth tinha seis meses; Gelenrten tinha dez meses… Várias crianças tinham um ano… Quarenta e oito crianças foram deportadas de Toulouse para os campos da morte…


A barbárie repetiu-se e poderá repetir-se! A barbárie tem sempre raízes no ódio e no racismo, seja contra quem for, e poderá chegar de novo!

A placa à entrada do Museu da Resistência e Deportação diz “A palavra resistir deve sempre ser conjugada no presente“.

Vítor Franco

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Uma noite em Lisboa



 
“A noite ia alta e o cais estava quase deserto. Já ali estava há algum tempo, quando reparei num homem que passeava ao acaso de um lado para o outro. Por fim parou e deixou-se ficar, olhando fixamente o barco, tal como eu… Não tardou que ouvisse passos atrás de mim…”.

A sugestão de leitura, que aqui partilho, foi escolha de debate num grupo literário. Não faço parte desse grupo, mas fui estimulado a vasculhar as entranhas dessa noite. Assim fiz. Fui à Biblioteca Municipal Braamcamp Freire e requisitei o livro de Erich Maria Remarque.

Nessa noite de 1942, em plena segunda guerra mundial, dois emigrantes alemães encenam uma estranha negociação. Um deles, um judeu perseguido pelo nazismo, conta uma história impressionante [impressionante é pouco] de resiliência e de amor. O outro ouve, a sua tarefa é só ouvir, a sua recompensa são dois bilhetes naquele barco que vai seguir para Nova York.

A narrativa do livro é aditiva, se assim se pode dizer. É quase impossível parar de ler, ou seja, parar de ouvir Schwarz – um homem que afinal não era Schwarz e foge do campo de concentração de Le Vernet [França] e decide resgatar a sua mulher em Osnabrück [Alemanha].

A narrativa trouxe-me à memória as visitas perturbantes aos campos de concentração de Dachau [Alemanha] e Mauthaussen [Áustria] aquando do meu percurso pelo rio Danúbio. Em Mauthaussen, tal como no campo onde é presa a mulher de Schwarz, as mulheres tinham também funções de escravas sexuais e uso e abuso do seu corpo por estranhos. O filme “O fotógrafo de Mauthaussen” é elucidativo.

Custa a crer como é possível que o ser humano atinja tão violento e degradante grau de desumanidade. Talvez não custe tanto a crer, basta começar por ver a indiferença geral, neste tempo, perante a morte de tantos milhares de imigrantes afogados no mar Mediterrâneo…

“– É bem possível que a nossa época venha a ser conhecida no futuro pelo Século da Ironia – observou Schwarz.”.

O que acontecerá ao personagem ouvinte de Schwarz e à mulher deste?

Fica a sugestão da leitura deste emocionante livro.

Vítor Franco

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Aristides de Sousa Mendes




 
Este 19 de julho faz 138 anos que nasceu Aristides de Sousa Mendes.

Homem singular, diplomata de carreira, tornou-se uma referência na defesa dos direitos humanos. O episódio mais conhecido foi quando, durante três dias e três noites, concedeu milhares de vistos para as pessoas fugirem da invasão alemã a França. Consta-se que 30 mil pessoas, entre elas 10 mil judeus, tenham conseguido salvar assim a sua vida.

Aristides terá apoiado o golpe de 28 de maio de 1928 que instaurou a ditadura, mas foi posição efémera que as contradições da vida são inexoráveis. Aristides “pagou cara a fatura” do seu gesto humanitário, foi expulso da carreira diplomática e terá falecido na pobreza. Salazar foi impiedoso com Aristides.

As desobediências de Aristides à ditadura fascista já vinham de antes de 1940, mas foi neste ano que a sua atitude se reforçou. Em março concede visto ao “refugiado político espanhol, o comunista Eduardo Neira Laporte, médico que exercera o cargo de professor na Universidade de Barcelona e que, à época era o dirigente da comunidade basca espanhola em Rivière”. Em maio já passa passaportes portugueses falsos e em junho, ante o avanço das tropas alemãs, concede vistos indistintamente.

Para perpetuar e informar sobre este ato de coragem e humanismo foi criado o Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes que, enquanto Cônsul de Portugal em Bordéus, desobedeceu ao regime e salvou muitos milhares de vidas.

Os reconhecimentos dos seus atos são inúmeros. Destaco que em 1966, o Centro para a Memória do Holocausto, em Jerusalém, lhe atribuiu o título de “o Justo entre as Nações”; o Estado Português, através da Assembleia da República, concedeu-lhe honras de Panteão Nacional em julho de 2020.

A Casa do Passal, casa da família em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, teve aprovada a candidatura para a sua requalificação e musealização; os seus trabalhos aproximam-se da conclusão.

Vale a pena refletir sobre estes atos de desobediência. São atos de coragem, dignidade e humanismo. Valem pela lição que nos transmitem, valem pelos valores e valem pela consciência de que viver subjugado ao medo “não é vida”!

Vítor Franco

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Alexandre Magno, o Grande...

Nicolas Andre Monsiau - Alexander and Diogenes 1818.

Consta-se que Alexandre Magno, o Grande, um dia foi visitar o filósofo Diógenes, o Cínico, que vivia no seu barril. Chegado ao barril, o poderoso Alexandre perguntou a Diógenes se havia alguma coisa que pudesse fazer por ele. Ao que este respondeu: “Sim, vá um pouco para o lado, está-me a tapar o sol”. A resposta é verdadeiramente surpreendente, até porque Diógenes era despojado de posses e estava respondendo a um imperador de vitórias contínuas em suas batalhas.

Este episódio, profusamente relatado e conhecido, veio-me à memória quando vi as notícias sobre a inauguração do monumento às vítimas da tragédia de 2017 em Pedrogão Grande que matou mais de sessenta pessoas e deixou prejuízos avassaladores na natureza e na vida das comunidades.

Em 2017 António Costa decretou três dias de luto nacional, visitou a região, e disse no debate do Estado da Nação na Assembleia da República, conforme cito do jornal Económico:

Em resposta à tragédia, Costa diz que as “tarefas imediatas” consistem em “reconstruir o que foi destruído” e também “esclarecer cabalmente o que aconteceu e apurar responsabilidades.” … Além das “tarefas imediatas”, Costa referiu-se ao “desafio estrutural” de “revitalizar o interior e reordenar a floresta” de Portugal. Em relação a esse desafio apelou ao “esforço conjunto para consensualizar esta reforma estrutural.” E advertiu: “Não podemos continuar a lamentar que o grande problema é o abandono das florestas e não aprovar os instrumentos de mobilização das terras ao abandono.”

Depois das várias “tragédias continuamos a ser o país do mundo com maior área de eucaliptal e o país que mais arde no Mediterrâneo” conforme explicou João Camargo, investigador em alterações climáticas, no jornal Expresso. Os desastres sucedem-se, mais de cem pessoas morreram carbonizadas…

Revitalizou-se o interior? Continua a perder população! Reordenou-se a floresta? A área de eucalipto cresce! Bolsa Nacional de Terras? A última notícia é de abril de 2018 e regista umas insignificantes 774 parcelas!

Há um ano escrevi sobre o tema aqui no jornal Mais Ribatejo, recomendo vivamente a leitura. De então para cá parece que o facto mais revelante que aconteceu foi a inauguração do monumento aos mortos na tragédia; mas nem a inauguração escapou à incompetência e autofagia dos “casos e casinhos” governativos.

As populações do interior já estão quase como Diógenes a pedir esmola a uma estátua. À indagação da sua conduta ele respondeu "por dois motivos: primeiro é que ela é cega e não me vê, e segundo é que eu me acostumo a não receber algo de alguém e nem depender de alguém."

No artigo citado relatei 9 factos que comprovam a incompetência no tão proclamado apoio ao interior do país. Nele descrevi também como é possível e é preciso “plantar água”. O biólogo Ricardo Leitão prova como se faz com sucesso. [Leia aqui o exemplo dos Sistemas Agroflorestais de Sucessão]. Em consequência: há conhecimento científico, há comprovadamente soluções para sair do fosso em que este modelo destruidor da natureza e do interior do país nos está a colocar.

O conhecimento, a cidadania, os movimentos ambientalistas já nos “mostraram o sol”. Porque é que se continua a fracassar?! Vale a pena pensar e perguntar…

Dos bombeiros às populações e aos movimentos cívicos, a minha solidariedade e esperança para todas as pessoas que não desistem!

Vítor Franco
29/06/2023

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Que perguntas lhe surgem?


 
O artigo desta semana é sui generis. Não, não vou escrever com expressões em latim, vou partilhar convosco algo novo. Então, é assim. As minhas crónicas demoram sempre várias horas a escrever [por vezes muitas] decorrendo da inspiração, das minhas idiossincrasias perante factos que por vezes nos devem fazer pensar, da necessidade de rigor ou confirmação de dados… Esta semana quase não é assim.

Começando. O fim de semana passado dediquei-o à Trienal de Arquitetura de Lisboa. É um fim de semana aberto a todas as pessoas, cheio de possibilidades de visita, desde monumentos a obras públicas e particulares normalmente não acessíveis, estimulando a comunidade a perceber os olhares e escolhas dos arquitetos. Uma feliz ideia!

Convido-vos a seguirem a página e não perderem as iniciativas do próximo ano.

As minhas escolhas recaíram nas obras de prolongamento do Metro de Lisboa, em particular em Alcântara, em casas particulares e no Observatório Astronómico de Lisboa.

Termino. Deixo agora a palavra a uma senhora que está “na boca do mundo”, a IA.

O Observatório Astronómico de Lisboa (OAL) é uma instituição científica localizada em Lisboa, Portugal. Fundado em 1861, tem uma longa história de contribuições para a astronomia e a investigação científica em Portugal.

O objetivo principal do Observatório Astronómico de Lisboa é promover a investigação astronómica e geofísica, bem como a disseminação do conhecimento científico no campo da astronomia. Ao longo dos anos, o OAL tem desempenhado um papel importante na investigação e observação astronómica em Portugal, bem como na formação de astrónomos e cientistas.

Uma das características mais emblemáticas do Observatório é o seu edifício principal, localizado no topo do Parque Florestal de Monsanto, proporcionando uma vista desimpedida do céu. O edifício abriga uma variedade de telescópios, instrumentos e equipamentos de observação astronómica. Além disso, o Observatório possui também um planetário e um centro de divulgação científica, onde são realizadas atividades educativas e eventos para o público em geral.

O Observatório Astronómico de Lisboa está envolvido em várias áreas de investigação, como astrofísica, cosmologia, dinâmica estelar, sistemas planetários e estudos sobre o Sol. Os seus investigadores e cientistas colaboram em projetos de investigação nacionais e internacionais, contribuindo para o avanço do conhecimento científico no campo da astronomia…


Retiro a palavra à minha convidada, a IA.

A IA é a inteligência artificial, no caso o ChatGPT, que me escreveu o texto [em itálico], em segundos. Segundos que podem substituir horas de pensamento, investigação, escrita e correção de texto. Isto é bom?

A resposta é difícil, à partida parece que sim, mas… Se mais pessoas quisessem escrever sobre o OAL os textos seriam iguais ou quase… Se uma turma de alunos for mandada fazer um texto sobre um tema o ChatGPT pode “resolver” em segundos o que deveria ser a investigação dos alunos, a procura, a reflexão, a escolha das abordagens, o trabalho de equipa (…) o desenvolvimento do espírito crítico do aluno…

É verdade que a inteligência artificial já entrou nas nossas vidas em muitos aspetos. Entendo que as novas tecnologias devem estar ao serviço do ser humano, mas dá que pensar quando um desenho criado por IA ganha um concurso de arte. Como ficará a arte, a engenharia, a arquitetura, a imaginação, o empoderamento humano com a inteligência artificial? Há tantas perguntas por fazer…

Vale a pena refletir sobre isto tudo, eu não tenho conclusões, só algumas poucas perguntas. Que perguntas lhe surgem?

Consta que Albert Einstein dizia "Não são as respostas que movem o mundo, são as perguntas."

Vítor Franco

sábado, 22 de abril de 2023

Em Abrantes, pescadores do rio pagam por pescar em água salgada.

 

Imagem de autor desconhecido


É o imposto do pescado. O fisco atua sobre os pescadores. “vinte homens, extremamente miseráveis, que pescavam no rio – onde não podiam chegar marés vivas – e alguns mesmos não pescavam, foram obrigados a pagarem o imposto do pescado…”.

É assim o fisco, o fisco confisca os pobres! O “fisco (…) tem um meio mais singelo e mais expedito: é aproximar-se de qualquer e dizer-lhe pondo uma carabina ao peito:

– Passe para cá o que leva na algibeira”.

O castigo veio pela lei de 10 de julho de 1843 e mereceu o repúdio de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz que lançaram As Farpas (1) aos regimes de então. Este episódio com os pescadores de Abrantes reporta a esse período.

Eça escreveu assim: “Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, têm tal similitude, que pedimos ao governo – que distinga por qualquer sinal estas duas profissões! Para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social…”.

Na monarquia, como na República, a lei determina aquilo que são as relações de força dentro do país. Quem é mais forte tem leis mais favoráveis, essa relação de forças exprime-se nas relações entre as pessoas e as classes na sociedade e tem consequência no parlamento e no governo.

Escreve o Jornal Expresso: “O facto de a variação nominal da receita fiscal (14,9%) ter sido superior à do PIB (11,4%), alavancou a carga fiscal – que se define pelos impostos e contribuições sociais efetivas (excluindo-se, portanto, as contribuições sociais imputadas, isto é, as que são suportadas pelos empregadores)…”. Ou seja, se entendo, os trabalhadores e o consumo pagaram o crescimento dos impostos!

Enquanto vastas camadas da população reivindica aumentos salariais a governos que fingem ouvidos moucos os milionários voltam a reclamar queremos pagar impostos! O grupo os milionários patriotas não desiste e criou um sítio na net. A mensagem é clara: “os extremos, tanto de pobreza, como de riqueza, estão a colocar a democracia em risco, por serem insustentáveis, muitas vezes perigosos e raramente tolerados durante muito tempo”.

Os “camaradas” milionários estão na “linha justa”! Vale a pena pensar nos seus argumentos, ou não? Vale a pena pensar na desigualdade, no que a todos deveria obrigar para um Estado Social, Justo, Democrático – incluindo a sua participação económica.

Olhai a França…

A população francesa está a mostrar a importância da democracia, da cidadania e da participação cívica nos destinos de um país.

Vítor Franco

 

(1) Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, “As Farpas, Crónica mensal da política, das letras e dos costumes”, organização de Maria Filomena Mónica, Cascais, Publicações Principia, 2004, pp. 277 – 278.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Se Santarém fosse uma menina



    
     "Com os olhos nos olhos, e as mãos nas mãos,
    Terei o coração feliz sem medo do amanhã.
    O dia em que minha alma não mais se afligirá,
    O dia em que também terei alguém que me queira.


Se Santarém fosse uma menina poderia cantar a linda canção que a linda Françoise Hardy cantou. Tous Les Garcons Et Les Filles é uma canção de esperança que poderia ser o hino da cidade. Sim, eu Santarém,

    Sim, mas eu sigo sozinha
    Pela rua, com dor na alma
”…

Sim, Santarém segue sozinha tal como a televisão francesa a mostrou. Os poderes locais invocarão que o narrador versejou, que enalteceu um “jardim das Portas do Sol que do alto abre-se ao Tejo”… Sim, mas o jardim mostrou-se nu, o jardim sem flores, um jardim romântico destruído por quem governou com olhares de “modernidade”…

As encostas viram-se castanhas, de escassas oliveiras, lugares apenas acarinhados por quem faz delas lugares de encontro, visita ou corrida…

O episódio televisivo da série “Do rio ao mar” [já aqui partilhado] veio contar o Tejo e as suas vidas. Dos pesquisadores de ouro [imagem vocês] às vindimas, dos avieiros às salinas, François Pécheux construiu uma narrativa ampla e cuidada do nosso Tejo e das nossas gentes.

É estranho como uma série transmitida em vários países da Europa, tenha desmerecido apreço ou simples notícia positiva pela autarquia escalabitana. Terá sido mera desatenção ou desconforto pelo facto de o realizador ignorar os touros e as touradas? Como será possível falar do Tejo, das Lezírias, das gentes e das vidas sem falar de touros e touradas? Ironizo eu…

O episódio, que já tem o n.º 11, passou no dia 5 de abril na RTP2 será visto por milhões de pessoas, convido-vos a revisitá-lo na RTP play. Aí compreenderão melhor a ligação que faço com esta linda melodia.

    “Em que olhos nos olhos
    E mãos nas mãos
    Eu terei o coração feliz
    Sem medo do amanhã


Assim deveria ser a cidadania em Santarém…

Sem medo do amanhã seria uma bela forma de comemorar a revolução de abril, a construção de uma cidade e um país realmente erguido em democracia, com a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação… Assim seria a liberdade a sério como nos cantou o Sérgio Godinho.

Assim… Santarém menina cantaria a linda canção de amor Tous Les Garcons Et Les Filles

    “Todos os meninos e meninas da minha idade
    Passeiam juntos na rua
    Todos os meninos e meninas da minha idade
    Sabem bem o que é ser feliz”…

Pois, se Santarém fosse uma menina… Uma menina que tem alguém que lhe quer…

Vítor Franco

sexta-feira, 11 de março de 2022

O que são valores ocidentais?

Direitos de autor  AP Photo/Rodrigo Abd

A criminosa invasão da Ucrânia trouxe consigo o reforço de narrativas dúbias usadas para a manipulação da mensagem ou tão só por inabilidade do emissor da mensagem.

Os ditos valores ocidentais tornaram-se um “chapéu” que serve para discriminar religiosamente ou etnicamente como para defender direitos humanos. Nesse “chapéu” tanto cabe o extremista racista como o bem-intencionado humanista.

Podemos encarar como lugar comum que os valores ocidentais são os da fraternidade, da solidariedade, da defesa dos direitos individuais e coletivos das pessoas – de todas as pessoas – e o respeito pela vontade e independência dos povos! Esse lugar comum é um bom ponto de partida para olhar a invasão da Ucrânia mas também para nos olharmos a nós próprios.

Vejamos dois aspetos diferentes: a política internacional e o individualismo como ideologia.

No lugar comum a partir do qual observamos a Ucrânia podemos partir para refletir o que foi a “intervenção militar Ocidental” nos Balcãs, no Iraque ou na Síria. Que responsabilidades foram imputadas a Durão Barroso e outros que afirmaram ter visto documentação – que afinal não existia – para justificar uma invasão, uma mortandade, uma catástrofe no Iraque? Onde esteve o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a ONU?

Desse lugar comum podemos olhar a ocupação da Palestina por Israel, o roubo de terras e casas, a opressão e agressão militar continuada, o cerco da Faixa de Gaza…

Desse lugar comum olhamos a indiferença ocidental generalizada perante a morte de milhares de refugiados africanos e árabes no Mediterrâneo, que também fogem das guerras e da fome nos seus países. Olhamos como os escorraçam (…) enquanto multinacionais e governos ocidentais apoiam ditadores locais e rapinam matérias primas e preciosas!

Onde está a civilização ocidental?

Onde está quando se deixa morrer, só e ao frio, um idoso caído na rua? Quando centenas ou milhares de pessoas passaram indiferentes à hipotermia que galgava sobre René Robert, fotógrafo, de 84 anos, morrendo ao fim de nove horas sem receber ajuda.

Olhai-vos amigas e amigos. Olhai-vos quando vos sensibilizais [e bem] com os refugiados brancos mas ignorais os negros. Olhai-vos quando vos sensibilizais com os que sofrem na Ucrânia [e bem] e ficais indiferentes aos que vivem ao vosso lado.

Olhai a sociedade que vivemos, os valores de competição a sobreporem-se aos valores da cooperação, os valores do individualismo [ideologicamente também liberais] a sobreporem-se à solidariedade, “eu que me safe, os outros que se lixem”! Olhemo-nos, quando caímos na tentação de ostracizar o mais fraco e de odiá-lo porque é diferente, porque é gay ou lésbica, porque é pobre ou gordo, porque é negro ou cigano…

Olhai-vos, olhemo-nos, quando a morte galga sobre um idoso caído na rua… E nós indiferentes!

O que é a civilização ocidental?

Vítor Franco

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

30 km nas cidades - até os teimosos podem aprender!

Foto de Vítor Franco

A propósito de mais um atropelamento mortal de uma mulher, grávida, ciclista, publiquei há dias o meu apoio à redução de velocidade automóvel nas zonas residenciais para 30 km/h.

A publicação no facebook, recebeu impropérios, comentários pretensamente científicos, acusações de fundamentalista da bicicleta e outras atitudes desqualificadas a que não dou troco.

É preciso colocar o dedo em algumas feridas:

1.ª É preciso acabar com o conceito de que o carro é o símbolo do sucesso, que se pode levar até “debaixo da cama”.

2.ª É preciso acabar com o dogma que dá ao automóvel individual a única possibilidade de mobilidade, desresponsabiliza o transporte público e desqualifica o poder autárquico.

3.ª É preciso dizer aos urbanistas e presidentes de câmara, que quando projetaram vias rápidas dentro das cidades isso só deu errado, que esse paradigma deu em inúmeros acidentes mortais e exclusão das pessoas com mobilidade reduzida.

4.ª É preciso dizer que passam de teimosos a outro adjetivo pior quando – depois de tanta triste estatística, de tanta produção de conhecimento sobre como bem-fazer, de tanta experiência positiva concreta por essa Europa fora –, se teima em manter erros que se pagam caro.

Portanto:

1.º É preciso aplicar o novo paradigma de mobilidade, sustentável, fluente, eficaz, útil e para todas as pessoas, que proteja as crianças e as pessoas idosas ou deficientes. Uma terra para tod@s!

2.º É preciso que as autarquias e as Comunidades Intermunicipais assumam as suas responsabilidades políticas e legais. Se não o fazem passa ao despautério, ou compadrio com o loby económico e ideológico do automóvel, ou são mesmo incompetentes!

3.º É preciso confrontar a Rodoviária do Tejo que não responde às necessidades porque quer é o seu lucro privado. A Comunidade Intermunicipal e as Câmaras podem perspetivar uma empresa municipal 100% pública, como já acontece noutros lugares, com horários adequados e quantidade e qualidade de serviço!

4.º É preciso acabar com o péssimo ordenamento do espaço público e estrutura dos arruamentos nas localidades. As Câmaras Municipais têm de mudar a agulha e pôr-se a trabalhar, com ou sem aproveitamento dos fundos europeus disponíveis para isso!

Caras e caros amigos

A ciência e a vida concreta já provou: “Os automóveis não podem continuar a circular à velocidade habitual, se queremos diminuir o número de acidentes, a sua gravidade, a poluição provocada pelos motores de combustão”. É o que começou a acontecer em Paris este fim de semana!

Tem dúvidas? 65,8% dos acidentes são em arruamentos! Consulte o Relatório de Sinistralidade, de junho, da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária! Convido também à leitura clicando neste meu artigo sobre atropelamentos ou este co-relacionado com mobilidade urbana.

Como dizia o nosso amado poeta Luís de Camões:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre, tomando sempre
Novas qualidades”

Cliquem aqui e ouça a linda interpretação do José Mário Branco.
Vítor Franco

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Boas surpresas de bicicleta, ou, Santarém tem tanto a aprender!

 

Foto Elisabete Silva, Volta ao Ciclismo 

Na aproximação a Faro paro a um sinal vermelho, sim, porque as regras de trânsito também se aplicam aos ciclistas. Ao meu lado para um ciclista a sério (…) nota-se logo: magrinho, ombros de nadador, equipamento e bicicleta a sério…

Olho o sinal e vejo as horas, se chegasse rápido à estação de comboios talvez conseguisse apanhar ainda o intercidades para cima… Pergunto ao ciclista do Futebol Clube de Porto se sabe o caminho mais rápido para a CP, diz que sim e que me leva lá, pede-me para eu ficar na roda dele e lá vou eu em fila indiana tipo Volta a Portugal em Bicicleta…

Perdi o comboio por uns minutos, fico a falar com o ciclista, a cara não me era desconhecida, agradeço a boleia e ficamos à conversa. Obrigado Daniel Mestre, não é todos os dias que sou rebocado em “fuga ao pelotão” dos minutos por um atleta de topo do ciclismo nacional…

A conversa com o Daniel foi muito interessante. Nela percebi muito melhor a importância do trabalho de equipa no ciclismo e como é um trabalho mesmo difícil…

Gostei daquele tempo à conversa e de perceber como esta compreensão da equipa se aplica a tudo na vida – até no ciclismo!

Podia-se aplicar na política autárquica, toda ela centrada na figura de uma só pessoa: o presidente. Um bom presidente só o pode ser se tiver equipa e se souber líder dessa equipa. Um líder não é um patrão. Um líder deve trabalhar cooperando, fomentar o gosto pela terra, o dinamismo da comunidade, não só dos da sua equipa como também dos adversários – é por isso que no ciclismo a formação mais comum é o pelotão: é a formação onde todos ganham.

Todos vós conheceis como muitas espécies de aves voam em “pelotão”, como muitos cardumes agem em “pelotão” para se defenderem dos predadores, como muitos animais atravessam rios para se defenderem de crocodilos…

O líder de um município ou junta de freguesia pode encarar a oposição como um predador ou como um crocodilo, poder pode, porém, sofre de visão; quem não percebe que o predador é o atraso económico e o mal-estar da população.

Quando uma ou um líder reage em negação a qualquer proposta que tenha a palavra Esquerda não está a agir como líder político, mas como líder de alcateia em exasperação. Quando ideias positivas e soluções necessárias para que a terra seja de tod@s são rejeitadas – porque na assinatura tem a palavra Esquerda – é um líder fraco. Quando as ideias positivas são aprovadas nos fóruns democráticos e competentes, e o líder se recusa a aplicá-las é um líder ditador.

Um líder deve ser a personalização da construção democrática e não a do autoritarismo. Um líder pode parecer simpático e pagar grades de minis em festas – mas o desafio é fazer da democracia uma festa que se quer vivida por tod@s!

Vítor Franco

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Tomar a Bastilha

Por Jean-Pierre Houël - Bibliothèque nationale de France, Domínio público

A Tomada da Bastilha comemorou-se neste 14 de julho. Momento marcante na Revolução Francesa a revolta popular parisiense libertou os presos políticos da fortaleza.

A sublevação das gentes de baixo inspirou gerações de revolucionários em todo o mundo e marcou indelevelmente os diretos humanos colocando, no centro da política, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão assinada por Portugal e publicada em Diário da República.

A Declaração de 1789 dizia no seu artigo primeiro: “Os Homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”; a Declaração atual, adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948 diz:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

Este princípio, com 232 anos, herdado da sublevação revolucionária está hoje sob ataque dos extremismos e conquistando apoios nos ódios da frustração ao regime capitalista realmente existente.

Hoje, em Portugal como no Mundo, crescem ódios que fomentam conflitos entre os de baixo para assim se proteger o poder dos de cima. Na Hungria, na Rússia, em vários países de extremismo religioso mascarado de muçulmano (…) perseguem-se as pessoas LGBT. Noutros, como na China, perseguem-se sindicalistas, jornalistas e democratas. Nos EUA discriminam-se negros numa loucura racista que teve o êxtase na presidência de Trump. No Brasil, o ódio à esquerda, lançado por corruptos em nome de um combate à corrupção, deu na presidência Bolsonaro e uma catástrofe gigantesca na saúde pública.

A tática é sempre a mesma: atacar e isolar os mais fracos ou os diferentes; a forma é sempre a mesma: sinalizar odiosa e insistentemente ciganos, negros, sindicalistas, pessoas LGBT (…); a meta é sempre a mesma: tornar exponencialmente visível as migalhas que caem da mesa do banquete dos poderosos para esconder o próprio banquete.

Cada vez que um mafioso das elites financeiras está a contas com a justiça, por nos roubar a todos, é renovada insistentemente a ladainha do RSI e das etnias! Tanta vez a mensagem é emitida que as pessoas acabam a acreditar numa perceção que não corresponde à realidade, como se uma árvore fosse a floresta. Tudo isto com a complacência de alguns órgãos de comunicação social que adoram sempre mais um bocadinho de notícias picantes e de sangue!

“…agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” é hoje um princípio revolucionário e aparentemente utópico no desvario do ego individual e da competitividade.
Vale a pena provocar-vos e chamar Léo Ferré à nossa conversa. Ele que também faleceu a um 14 de julho. Ele, que adoraria ter estado na conquista da Bastilha, ele, o poeta e cantor insubmisso que um dia cantou ao rio Sena e de lá roubo um pouco:

“Você não se importa se vivemos ou morremos
Você é mais burro do que uma ampulheta!
É normal, você é um personagem,
Seu lugar é feito sob o grande sol
Homens e você é tudo igual
Não há misericórdia que flutua
Você está enlameado em suas profundezas!”

É isso, que lhe pergunto: quer ficar enlameado nas profundezas ou quer tomar a conquista da Bastilha?

Vítor Franco

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Não podemos ignorar!




“Vemos, ouvimos e lemos

Relatórios da fome

O caminho da injustiça

A linguagem do terror”

Esta quadra, do poema “Cantata da Paz”, de Sophia de Mello Breyner, muito bem cantado por José Mário Branco, expressa bem a mensagem que quero partilhar convosco.

Recordei-me deste poema quando li a notícia do assassinato do jovem galego Samuel Luiz, de 24 anos. O Samuel foi morto na madrugada da última sexta-feira, “após espancamento brutal de um grupo de pessoas que gritava ‘bicha’, confirmado por testemunhas diretas do atentado”, relata o jornal espanhol Público.

Segundo o jornal Voz da Galicia os agressores, depois de uma primeira agressão, interrompida por outros jovens, proferiram insultos homofóbicos e “perseguiram a vítima para concretizarem uma segunda e mortífera agressão”.

Em Portugal, em 2019, o Observatório da Discriminação Contra Pessoas LGBTI recebeu 171 queixas de crimes de ódio contra pessoas LGBTQ+. “Ainda são frequentes os relatos de crimes violentos e homicídios motivados por LGBTQfobia e hoje grande parte das pessoas tem pelo menos um amigo ou amiga que já foi vítima dessa discriminação.”

Esta corrente de ódio, que está a ser expandida na Europa pela extrema-direita, tem no governo húngaro o ponta de lança institucional. A perseguição às pessoas LGBT que o governo e vários municípios húngaros desencadearam levou à reação generalizada das pessoas que defendem todas as pessoas. “Não há neutralidade na defesa dos direitos fundamentais”, como diz Fabíola Cardoso.

O presidente do Conselho Europeu tomou posição. Charles Michel condenou a homofobia e defendeu a defesa dos valores da União Europeia (UE). A presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, apelidou a lei húngara mascarada de “promoção da homossexualidade em menores de 18 anos” como “uma vergonha”. O parlamento europeu aprovou também uma moção contra as homofóbicas leis húngaras e quase só a extrema direita apoiou o governo húngaro. Por proposta do Bloco de Esquerda, o parlamento português também se colocou ao lado dos direitos humanos.

Assim, apresentei nesta Assembleia Municipal do dia 30 de junho, uma recomendação à Câmara Municipal para reforçar o já existente Plano Municipal de Combate à Discriminação em razão da Orientação Sexual, não só porque finda em dezembro mas também tem verbas irrisórias.

A recomendação reafirmava também:

“No nosso município de Santarém respeitamos a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição da República, assim:

a) Rejeitamos zonas de exclusão de pessoas e repudiamos a perseguição a pessoas LGBT;

b) No respeito democrático, reforçamos a mensagem de que o nosso município é uma Zona de Liberdade LGBT e de todas as pessoas, sem discriminações.”

A maioria conservadora do “parlamento municipal” votou contra; só 9 deputados se juntaram a mim e tiveram a coragem de votar a favor da recomendação “Respeitar os direitos humanos, rejeitar a perseguição a pessoas LGBT"!

Pelos vistos, respeitar a Constituição e respeitar Direitos Humanos são coisas difíceis de assumir em Santarém!

Agora, cada pessoa tire as conclusões que entender.

Vítor Franco

quinta-feira, 10 de junho de 2021

O José “Cuecas” e o ciclista


As pessoas mais consumidas pelo rolar incessante do relógio recordar-se-ão do Zé “Cuecas”.

Já o trouxe ao nosso diálogo numa crónica que pode ler aqui no Mais Ribatejo, nessa altura acompanhado de tantas outras recordações.

O Zé tinha uma pequena oficina ali na Rua dos Esteiros, quase paredes meias com a Ermida do Milagre sem que isso influenciasse a sua veia pouco católica.

Pois aqui o rapaz decidiu aprender a sapateiro, aprender foi sempre teima. Conversado com o mestre Zé lá comecei a tentar chegar-me à arte. Empenhado comprei algumas ferramentas: o pica pontos, a sovela e uma turquês de arrancar; o Zé arranjou-me uma faca de sapateiro. Ainda hoje, 44 ou 45 anos depois, guardo uma sovela e um pica pontos!

Fui tomando o jeito, apurando o gosto e aumentando a autoconfiança; mas o sapateiro em construção não chegou a ser um sapateiro construído. Famigerado dia aquele em que estando eu a colocar uma capas a faca me escapou e zás quase assassinou o sapato direito de uma senhorinha às direitas do nosso bairro do Pereiro. Pobre aprendiz… O Zé zurziu de tal modo que se deve ter ouvido na mercearia da minha saudosa mãe no Largo do Cemitério. Assim terminou um futuro brilhante na arte de bem confortar pés bonitos!

– Porque isto me veio à memória?

– Porque neste dia 8 de junho fiz a etapa Ferreira do Alentejo – Almodôvar, onde cheguei quase musgado, na minha viagem em bicicleta tomando a Estrada Nacional 2 em Montemor o Novo até Faro.

– Vocês sabem que Almodôvar é a terra dos sapateiros?

– Assim é, a terra chegou a ter dezenas de artistas na arte de bem calçar. Muitos estão retratados e as ferramentas de trabalho expostas no Museu Municipal Severo Portela. O museu é sóbrio mas tem história, cultura e identidade!

A visita foi um gosto e deu origem à partilha destas recordações com o jovem guia.

Partilho convosco estas notas de recordação e afeto, não só porque elas fizeram parte da aprendizagem deste ser humano, mas porque quero valorizar muito como é importante tornar presente as gentes e o passado que aqui nos trouxe.

Nesta terra, que gostamos, a cassete toca sempre igual. Com Moita a unilateralidade do tema tauromáquico esmagou tradições, culturas, percursos e vivências. Há uns anos a cassete virou ao lado B mas a música é igual, mesmo que o artista use outros acordes. Imensas memórias de gentes que construíram bonitas estórias da nossa história coletiva jazem em tumbas de silêncio.

Por isso, vale sempre a pena trazer cada pequena estória à memória coletiva porque é essa memória que constrói – na sua diversidade – a nossa história e identidade comunitária.

Aprendamos com Almodôvar!

Vítor Franco

quarta-feira, 10 de março de 2021

A primeira lei de Newton, a Escola Industrial e o Mercado Municipal



Limpava os meus livros do 12.º ano, tirado à noite, enquanto trabalhador / estudante, na saudosa Escola Industrial, hoje Ginestal Machado, quando dou de caras com o livro de Física.

Este ato de arrumar e limpar livros é prazeroso! Abandono o presente, perco-me no passado, esvoaço em lembranças esquecidas, percorro momentos como filmes em tela…

Trabalhava em turnos rotativos, já era pai, sindicalista, fazia voluntariado associativo… Foi quando chegou a saudosa e para mim inesquecível professora Berta[i]… Nasceu uma paixão, não pela professora, mas pela disciplina de Física que tão bem lecionava… Paixão que criou a ansiedade de saber mais, de compreender mais, melhor…

Quanto mais sabemos, mais percebemos o que imensamente nos falta saber!

Newton “tirou-me do sério”… Com ele encontrei o entendimento de que as leis da Física se aplicam também ao comportamento humano e à sociedade. Com ele e a filosofia de Marx, a compreensão do mundo fez mais sentido!

Cada um, ou uma, de nós é como um grão de areia numa imensa praia – mas não há praia sem grãos de areia! É assim todo o nosso planeta, toda a via láctea, todo o imenso universo…

Há uma lei de Newton que aprecio em particular: a primeira lei, eu chamo-lhe simplesmente a “lei do movimento uniforme e retilíneo”. Mais ou menos isto: um objeto estará em repouso ou prosseguirá em movimento retilíneo e uniforme se sobre ele não atuar nenhuma força ou se o resultante das forças que atuarem for igual a zero.

- Como se liga essa lei ao Mercado Municipal, perguntarão?

- Pela primeira vez, neste mandato autárquico, houve forças que atuaram sobre o movimento “retilíneo” [de privatizações] da Câmara! Houve iniciativas cidadãs, Cartas Abertas, pronunciamentos variados na comunicação social, movimentações na comunidade… Essas iniciativas e esses pronunciamentos agiram como vetores de forças sobre o objeto: a decisão de Ricardo Gonçalves de concessionar o Mercado a privados.

Muitos grãos de areia decidiram mover-se e a praia alterou-se. A consciência e a palavra de cada grão induziu uma ação e reação de outros grãos, qual terceira lei de Newton! Todo esse “pequeno” sobressalto físico e cívico agiu sobre a decisão da Assembleia Municipal originando uma força de reação em oposição ao movimento do objeto e obrigou-o a parar!

Abandono o presente e reencontro-me com o passado, aquele momento em que pergunto à professora Berta que livro me aconselharia para continuar a ler física e em particular astrofísica.

- “Um pouco mais de azul[ii], de Hubert Reeves[iii], se bem me lembro...

Saiba, cara leitora ou leitor, o que escreve Hubert na dedicatória: “este livro é dedicado a todas as pessoas maravilhadas com o mundo”!

Maravilhe-se, seja um grão de areia em sobressalto!

Vítor Franco


[i] Já não me lembro do sobrenome da professora Berta…
[ii] O título da edição portuguesa reproduz um fragmento do poema “Quase”, de Mário de Sá Carneiro.
[iii][iii] Hubert Reeves, “Um pouco mais de azul”, Lisboa, Gradiva.

terça-feira, 2 de março de 2021

A velha das laranjas, as galegas e o eletricista

A vendedora de laranjas - Maria de Lourdes Melo e Castro

Olhei a velha… “em frente de um cesto com laranjas e limões, uma vendedora idosa, sorridente (…) exibe uma laranja na mão direita. Veste blusa branca e tem na cabeça um pano castanho alaranjado com várias dobras, deixando parcialmente descoberto, sobre a testa, o cabelo branco, penteado para trás…”

Dirijo-lhe palavra:

— Olá, bom dia! Como está a senhora?

— Bom dia senhor Vítor, vou bem, olhe, como Deus manda, sabe, ando nervosa, sabe, assinei a carta à Câmara, sabe… Já viu? Quererem fazer-nos uma coisa destas com esta crise… E a gente já velhas? Já viu? Então o que vai hoje?

— Compreendo-a, há muitas mais pessoas que vos compreendem, dia 8 fica decidido, vamos ter esperança… As laranjas este ano apodrecem rápido… Quero dois quilos, tenho aqui saco…

— Traz ovos frescos das suas galinhas? Se tiver quero uma dúzia…

— Sim, aqui estão… Você, fale lá homem, não se acanhe…

Pago.

Procuro a vizinha da velha, chamo-lhe a mulher das cebolas — mas ela gosta! Ainda se lembra da foto que lhe tirei no mercado de Rio Maior, pausava amamentando um petiz agora “homem de ir à tropa”. Homem feito, ajuda a mãe no mercado e na horta… O pai ficou desempregado e faz biscates nas obras… Cuida também da horta; que bela horta, sim, que eu já a vi, de lá vêm as cebolas, não há cebolas como aquelas…

Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira.


Encontro-a, meto conversa com a vizinha da velha, a mulher das cebolas… Pergunto-lhe pela irmã, sim, também já tenho uma foto dela, é uma mulher muito bonita…

— Então a sua irmã? Hoje não veio mostrar a carinha linda?

— Ah!? Senhor Vítor, não seja malandro, olhe que eu também não sou feia… A galega mais nova ficou a apanhar agriões e nabiças para fazer molhos para vendermos amanhã… Quer que lhe guarde?

— Sim, quero, um molho de cada. Já sabe da Assembleia Municipal, não sabe?

— Sei pois, também assinei aquele papel. Sabe senhor Vítor, há gente que não se lembra da pobreza, falam, falam, mas não ligam aos pobres, ao nosso sustento, sabe? O senhor está do nosso lado não está?

— Claro que sim, então devia estar de que lado? As senhoras são a vida da terra… Vou lá defender que não haja concessão aos privados, que a gestão seja municipal e nós possamos fiscalizar…

— Pois, eu li o que o senhor escreveu com os seus amigos… Sabe, olhe que está bem, sabe senhor Vítor, eu vou ver pela internet, é segunda-feira dia 8 às 8 da noite não é?

— Sim, com isto do Covid a Assembleia Municipal é pela internet… Vá, até amanhã. E traga a galega nova que ela continua gira…

Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela.

Sorrimos os dois…

A mãe e o pai tinham vindo lá de cima, da Galiza, com as duas filhas, à procura de melhor sorte nas Minas do carvão de Rio Maior. O fim da mina, em junho de 1969, ditara-lhes o fim da esperança… O homem amofinou, entregou-se à taberna… Arribou e voltou ao campo… Morreu novo, coitado! Ficaram a mãe e as filhas, sozinhas, sem casa e sem pão…

José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.

Agarraram-se à amanha da horta e vendem no mercado… Amanhã não me posso esquecer dos agriões, são bons para o ácido úrico e estes não trazem aqueles químicos… E vou comprar mais laranjas à velha… Ela até gosta que eu lhe chame a velha das laranjas. Às vezes responde:

— Diga lá velho eletricista?

Pois é, dia 8 lá estarei, [na Assembleia Municipal] a defender o pão delas, o delas e o meu porque todos juntos somos uma comunidade… Sim, elas também são gente com o coração à esquerda!

 

Vítor Franco


Créditos de fotos: Vítor Franco, Museu José Malhoa, 2020.

Quadros:

Maria de Lurdes de Mello e Castro, “A vendedeira de laranjas”, 1929, óleo sobre tela.

Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira.

Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela.

Escultura:

José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.

Texto ficcionado.

Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!

O bairro do Pereiro foi o da minha criação, assim diria a minha mãe. A senhora Alice tinha uma mercearia no Largo dos Capuchos, mais conheci...