quarta-feira, 17 de abril de 2024

Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!


O bairro do Pereiro foi o da minha criação, assim diria a minha mãe.

A senhora Alice tinha uma mercearia no Largo dos Capuchos, mais conhecido como o Largo do cemitério. De lá, trabalhando sem descanso, criou sozinha os três filhos.

O bairro era um lugar cheio de vida, cheio de crianças e jovens. O Largo do cemitério era o centro de todas as vivências. Era lá que jogávamos à apanhada, ao lenço, (…) à bola; de lá, por vezes, tínhamos de fugir à polícia quando o encarregado do cemitério a chamava. Queixava-se ele, e com talvez alguma razão, que a bola quando chutada por alto e entrada no cemitério partia objetos. Uma vez por outra tivemos de fugir para dentro do cemitério mesmo de noite, era uma aventura nos tempos da ditadura…

O 25 de abril teve um enorme impacto no bairro. Em primeiro lugar ele trouxe um aumento do bem-estar e do poder de compra das pessoas, com consequente benefício para a mercearia da Alice. A minha mãe passou a ir muito mais vezes aos armazéns numa velha carrinha Opel Kadett e eu passei a trabalhar mais na mercearia, o que era um problema sério para mim.

Não raras vezes a rapaziada vinha chamar-me, “Vítor, anda jogar à bola”… Grande dilema, quase sempre a bola ganhava e a mercearia ficava ao cuidado do freguês que chegasse. Aí, “Vítor, anda aviar-me”, lá ía eu… Depois voltava à bola… O problema é que a Alice detestava que a mercearia ficasse à vigilância popular, vai daí a rasoira de madeira do feijão, do grão ou do milho fazia serviço alheio ao seu fim de fabrico… Costumamos dizer bons tempos não é?

O bairro tem uma estrutura urbanística diferente do planalto, ruas retilíneas com perpendiculares, nele instaurou-se um acampamento romano como muito bem explica José Augusto Rodrigues em vídeo de O Ribatejo [veja aqui]. O bairro do Pereiro ter-lhe-á tomado nome por ser lugar de macieiras de peros, não se sabe…

A Porta de Valada já não existe, mas, a estrada para o Outeiro da Forca era a saída para as barreiras onde cheguei a apanhar pintassilgos e carrascos para a fogueira das festas de S. João. Lugares de memória…

É por esses lugares que continuo a passar, pelo menos quando faço os meus treinos de corrida. O Largo do cemitério foi alcatroado e agora tem muito mais carros do que crianças. A mercearia do Rato e da Alice também são recordações… É com alguma tristeza que se vê a queda de casas e de gentes.

Recentemente foi necessário cortar uma estrada por mais uma derrocada de um lar abandonado à sua ruína. No Pereiro as casas morrem com as pessoas… O Pereiro como a judiaria, a mouraria, outros lugares que se escapam entre os dedos da memória e da vida…

Seria interessante reavivar a memória das vivências de Santarém, a presença judaica e a perseguição aos judeus, ou os 400 anos de presença islâmica cuja mesquita estaria onde é hoje a Igreja de Santa Maria das Alcáçovas. É que a nossa identidade, dita de ribatejana, é uma agregação de povos e culturas. Mas isso faz-se com políticas públicas e uma gestão municipal e da freguesia que tragam a diversidade do passado ao presente.

Tudo isto por lembrança do Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!

Vítor Franco

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