|
A vendedora de laranjas - Maria de Lourdes Melo e Castro |
Olhei a velha… “em frente de
um cesto com laranjas e limões, uma vendedora idosa, sorridente (…) exibe uma
laranja na mão direita. Veste blusa branca e tem na cabeça um pano castanho
alaranjado com várias dobras, deixando parcialmente descoberto, sobre a testa,
o cabelo branco, penteado para trás…”
Dirijo-lhe palavra:
— Olá, bom dia! Como está a
senhora?
— Bom dia senhor Vítor, vou bem,
olhe, como Deus manda, sabe, ando nervosa, sabe, assinei a carta à Câmara,
sabe… Já viu? Quererem fazer-nos uma coisa destas com esta crise… E a gente já
velhas? Já viu? Então o que vai hoje?
— Compreendo-a, há muitas mais
pessoas que vos compreendem, dia 8 fica decidido, vamos ter esperança… As
laranjas este ano apodrecem rápido… Quero dois quilos, tenho aqui saco…
— Traz ovos frescos das suas
galinhas? Se tiver quero uma dúzia…
— Sim, aqui estão… Você, fale lá
homem, não se acanhe…
Pago.
Procuro a vizinha da velha,
chamo-lhe a mulher das cebolas — mas ela gosta! Ainda se lembra da foto que lhe
tirei no mercado de Rio Maior, pausava amamentando um petiz agora “homem de ir
à tropa”. Homem feito, ajuda a mãe no mercado e na horta… O pai ficou
desempregado e faz biscates nas obras… Cuida também da horta; que bela horta,
sim, que eu já a vi, de lá vêm as cebolas, não há cebolas como aquelas…
|
Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira. |
Encontro-a, meto conversa com a
vizinha da velha, a mulher das cebolas… Pergunto-lhe pela irmã, sim, também já
tenho uma foto dela, é uma mulher muito bonita…
— Então a sua irmã? Hoje não veio
mostrar a carinha linda?
— Ah!? Senhor Vítor, não seja
malandro, olhe que eu também não sou feia… A galega mais nova ficou a apanhar
agriões e nabiças para fazer molhos para vendermos amanhã… Quer que lhe guarde?
— Sim, quero, um molho de cada. Já
sabe da Assembleia Municipal, não sabe?
— Sei pois, também assinei aquele
papel. Sabe senhor Vítor, há gente que não se lembra da pobreza, falam, falam,
mas não ligam aos pobres, ao nosso sustento, sabe? O senhor está do nosso lado
não está?
— Claro que sim, então devia estar
de que lado? As senhoras são a vida da terra… Vou lá defender que não haja
concessão aos privados, que a gestão seja municipal e nós possamos fiscalizar…
— Pois, eu li o que o senhor
escreveu com os seus amigos… Sabe, olhe que está bem, sabe senhor Vítor, eu vou
ver pela internet, é segunda-feira dia 8 às 8 da noite não é?
— Sim, com isto do Covid a Assembleia
Municipal é pela internet… Vá, até
amanhã. E traga a galega nova que ela continua gira…
|
Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela. |
Sorrimos
os dois…
A mãe e o
pai tinham vindo lá de cima, da Galiza, com as duas filhas, à procura de melhor
sorte nas Minas do
carvão de Rio Maior. O fim da mina, em junho de 1969, ditara-lhes
o fim da esperança… O homem amofinou, entregou-se à taberna… Arribou e voltou
ao campo… Morreu novo, coitado! Ficaram a mãe e as filhas, sozinhas, sem casa e
sem pão…
|
José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore. |
Agarraram-se à amanha da horta e
vendem no mercado… Amanhã não me posso esquecer dos agriões, são bons para o
ácido úrico e estes não trazem aqueles químicos… E vou comprar mais laranjas à
velha… Ela até gosta que eu lhe chame a velha das laranjas. Às vezes responde:
— Diga lá velho eletricista?
Pois é, dia 8 lá estarei, [na Assembleia Municipal] a
defender o pão delas, o delas e o meu porque todos juntos somos uma comunidade…
Sim, elas também são gente com o coração à esquerda!
Vítor
Franco
Créditos
de fotos: Vítor Franco, Museu José
Malhoa, 2020.
Quadros:
Maria de
Lurdes de Mello e Castro, “A vendedeira
de laranjas”, 1929, óleo sobre tela.
Artur
Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913,
óleo sobre madeira.
Henrique
Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca
de 1948), óleo sobre tela.
Escultura:
José
Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.
Texto
ficcionado.