terça-feira, 2 de março de 2021

A velha das laranjas, as galegas e o eletricista

A vendedora de laranjas - Maria de Lourdes Melo e Castro

Olhei a velha… “em frente de um cesto com laranjas e limões, uma vendedora idosa, sorridente (…) exibe uma laranja na mão direita. Veste blusa branca e tem na cabeça um pano castanho alaranjado com várias dobras, deixando parcialmente descoberto, sobre a testa, o cabelo branco, penteado para trás…”

Dirijo-lhe palavra:

— Olá, bom dia! Como está a senhora?

— Bom dia senhor Vítor, vou bem, olhe, como Deus manda, sabe, ando nervosa, sabe, assinei a carta à Câmara, sabe… Já viu? Quererem fazer-nos uma coisa destas com esta crise… E a gente já velhas? Já viu? Então o que vai hoje?

— Compreendo-a, há muitas mais pessoas que vos compreendem, dia 8 fica decidido, vamos ter esperança… As laranjas este ano apodrecem rápido… Quero dois quilos, tenho aqui saco…

— Traz ovos frescos das suas galinhas? Se tiver quero uma dúzia…

— Sim, aqui estão… Você, fale lá homem, não se acanhe…

Pago.

Procuro a vizinha da velha, chamo-lhe a mulher das cebolas — mas ela gosta! Ainda se lembra da foto que lhe tirei no mercado de Rio Maior, pausava amamentando um petiz agora “homem de ir à tropa”. Homem feito, ajuda a mãe no mercado e na horta… O pai ficou desempregado e faz biscates nas obras… Cuida também da horta; que bela horta, sim, que eu já a vi, de lá vêm as cebolas, não há cebolas como aquelas…

Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira.


Encontro-a, meto conversa com a vizinha da velha, a mulher das cebolas… Pergunto-lhe pela irmã, sim, também já tenho uma foto dela, é uma mulher muito bonita…

— Então a sua irmã? Hoje não veio mostrar a carinha linda?

— Ah!? Senhor Vítor, não seja malandro, olhe que eu também não sou feia… A galega mais nova ficou a apanhar agriões e nabiças para fazer molhos para vendermos amanhã… Quer que lhe guarde?

— Sim, quero, um molho de cada. Já sabe da Assembleia Municipal, não sabe?

— Sei pois, também assinei aquele papel. Sabe senhor Vítor, há gente que não se lembra da pobreza, falam, falam, mas não ligam aos pobres, ao nosso sustento, sabe? O senhor está do nosso lado não está?

— Claro que sim, então devia estar de que lado? As senhoras são a vida da terra… Vou lá defender que não haja concessão aos privados, que a gestão seja municipal e nós possamos fiscalizar…

— Pois, eu li o que o senhor escreveu com os seus amigos… Sabe, olhe que está bem, sabe senhor Vítor, eu vou ver pela internet, é segunda-feira dia 8 às 8 da noite não é?

— Sim, com isto do Covid a Assembleia Municipal é pela internet… Vá, até amanhã. E traga a galega nova que ela continua gira…

Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela.

Sorrimos os dois…

A mãe e o pai tinham vindo lá de cima, da Galiza, com as duas filhas, à procura de melhor sorte nas Minas do carvão de Rio Maior. O fim da mina, em junho de 1969, ditara-lhes o fim da esperança… O homem amofinou, entregou-se à taberna… Arribou e voltou ao campo… Morreu novo, coitado! Ficaram a mãe e as filhas, sozinhas, sem casa e sem pão…

José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.

Agarraram-se à amanha da horta e vendem no mercado… Amanhã não me posso esquecer dos agriões, são bons para o ácido úrico e estes não trazem aqueles químicos… E vou comprar mais laranjas à velha… Ela até gosta que eu lhe chame a velha das laranjas. Às vezes responde:

— Diga lá velho eletricista?

Pois é, dia 8 lá estarei, [na Assembleia Municipal] a defender o pão delas, o delas e o meu porque todos juntos somos uma comunidade… Sim, elas também são gente com o coração à esquerda!

 

Vítor Franco


Créditos de fotos: Vítor Franco, Museu José Malhoa, 2020.

Quadros:

Maria de Lurdes de Mello e Castro, “A vendedeira de laranjas”, 1929, óleo sobre tela.

Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira.

Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela.

Escultura:

José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.

Texto ficcionado.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!

O bairro do Pereiro foi o da minha criação, assim diria a minha mãe. A senhora Alice tinha uma mercearia no Largo dos Capuchos, mais conheci...