quinta-feira, 10 de junho de 2021

O José “Cuecas” e o ciclista


As pessoas mais consumidas pelo rolar incessante do relógio recordar-se-ão do Zé “Cuecas”.

Já o trouxe ao nosso diálogo numa crónica que pode ler aqui no Mais Ribatejo, nessa altura acompanhado de tantas outras recordações.

O Zé tinha uma pequena oficina ali na Rua dos Esteiros, quase paredes meias com a Ermida do Milagre sem que isso influenciasse a sua veia pouco católica.

Pois aqui o rapaz decidiu aprender a sapateiro, aprender foi sempre teima. Conversado com o mestre Zé lá comecei a tentar chegar-me à arte. Empenhado comprei algumas ferramentas: o pica pontos, a sovela e uma turquês de arrancar; o Zé arranjou-me uma faca de sapateiro. Ainda hoje, 44 ou 45 anos depois, guardo uma sovela e um pica pontos!

Fui tomando o jeito, apurando o gosto e aumentando a autoconfiança; mas o sapateiro em construção não chegou a ser um sapateiro construído. Famigerado dia aquele em que estando eu a colocar uma capas a faca me escapou e zás quase assassinou o sapato direito de uma senhorinha às direitas do nosso bairro do Pereiro. Pobre aprendiz… O Zé zurziu de tal modo que se deve ter ouvido na mercearia da minha saudosa mãe no Largo do Cemitério. Assim terminou um futuro brilhante na arte de bem confortar pés bonitos!

– Porque isto me veio à memória?

– Porque neste dia 8 de junho fiz a etapa Ferreira do Alentejo – Almodôvar, onde cheguei quase musgado, na minha viagem em bicicleta tomando a Estrada Nacional 2 em Montemor o Novo até Faro.

– Vocês sabem que Almodôvar é a terra dos sapateiros?

– Assim é, a terra chegou a ter dezenas de artistas na arte de bem calçar. Muitos estão retratados e as ferramentas de trabalho expostas no Museu Municipal Severo Portela. O museu é sóbrio mas tem história, cultura e identidade!

A visita foi um gosto e deu origem à partilha destas recordações com o jovem guia.

Partilho convosco estas notas de recordação e afeto, não só porque elas fizeram parte da aprendizagem deste ser humano, mas porque quero valorizar muito como é importante tornar presente as gentes e o passado que aqui nos trouxe.

Nesta terra, que gostamos, a cassete toca sempre igual. Com Moita a unilateralidade do tema tauromáquico esmagou tradições, culturas, percursos e vivências. Há uns anos a cassete virou ao lado B mas a música é igual, mesmo que o artista use outros acordes. Imensas memórias de gentes que construíram bonitas estórias da nossa história coletiva jazem em tumbas de silêncio.

Por isso, vale sempre a pena trazer cada pequena estória à memória coletiva porque é essa memória que constrói – na sua diversidade – a nossa história e identidade comunitária.

Aprendamos com Almodôvar!

Vítor Franco

terça-feira, 4 de maio de 2021

De bicicleta em Porto Santo, dia 1

Manhã cedo apanho o barco da Porto Santo Line. O Lobo Marinho é um barco agradável com tripulação simpática. A época é baixa e leva pouca gente, eu gosto mais assim.


A pouco e pouco vejo desaparecer a ilha da Madeira e a sua Ponta de S. Lourenço, local de bela caminhada. No horizonte o Ilhéu da Cal clama pelo grito “terra à vista”! Chegado ao porto, de Porto Santo, observo a saída de carros, camiões, motorizadas e gentes carregadas…

Deixo sair quase toda a gente, pego na mochila e desço. Tomo o mini autocarro com destino à vila, perdão cidade, mas Vila Baleira de seu nome. Desço na última paragem, observo… Idosos trocam conversa entre cigarros, uma empregada espera clientes à porta do café, vejo o posto de turismo e dirijo-me lá… O funcionário desentorpece, dá-me o mapa da ilha e pouco mais…

Procuro uma loja de bicicletas e alugo. Monto direto ao Inatel.

Lugar calmo numa já calma cidade com nome de vila, o Inatel fica às “portas” da praia da Calheta. Arrumo as coisas e dou um salto à praia de fama curativa.

O primeiro dia na bici, como lhe chamam os castelhanos, é para descobrir a Praia do Zimbralinho, voltar à estrada de “gravel” e rumar ao miradouro do Furado Norte, dali subir ao Pico do Espigão [uff, a bici ficou no caminho que era subir “a pique”], voltar ao alcatrão com destino ao Pico Ana Ferreira.

O acesso ao Zimbralinho estava cortado mas deu para uma boa “chapa”. É uma praia muito pequena mas bonita.

O miradouro do Furado Norte, na arriba costeira de Morenos, é um local muito bem tratado com umas vistas esplêndidas e com um bonito parque de merendas.


Do miradouro segui ao Pico Espigão. É um lugar muito interessante. Trata-se de “forma de relevo alongado que chega aos 270 m” tendo na sua “cumeeira um magnífico filão de rocha rara o mugearito”; um bocadito mais velho que eu: mais de 12,5 milhões de anos… Lá de cima vê-se a ilha dos dois lados.

Descendo o pico e tomando o alcatrão, segui à esquerda rumo ao campo de golf. Continuando tens acesso a uma formação geológica, de estrutura colunar prismática, a que chamam “Piano”. Segundo a descrição no local “as rochas encaixantes são depósitos vulcanoclásticos e lavas submarinas pertencentes à fase da montanha submarina”… A não perder!

É tempo de descer… Vai um mergulho na água quentinha na praia do Combro?

Vítor Franco

terça-feira, 6 de abril de 2021

Conversas descontraídas ou formações bicicletas / mulheres / reutilização / logística / férias / família / aventura


Informação de https://cicloda.cicloficina.pt 
WEBINARS CICLODA
A CICLODA apresenta o ciclo de webinars BICICLETAS E... a realizar entre 8 de Abril e 17 de Junho de 2021.
Serão seis conversas temáticas e descontraídas com as pessoas convidadas, e abertas à participação do público.
De 15 em 15 dias haverá um webinar, sempre às 18h30 e com a duração de uma hora, transmitido online.
Este ciclo é co-organizado pela CICLODA e Câmara Municipal de Lisboa, com o apoio Velo-City 2021.

1º evento: https://www.facebook.com/events/1205595209872858/ 
BICICLETAS E... MULHERES

08 ABRIL 2021 | 18H30

MARIA CANELHAS - FEMINA

ANA REGEDOR - RODA DOS VENTOS

PATRÍCIA MELO - CICLISTA EXPERIENTE

GIULIA GALLORINI - CICLISTA PRINCIPIANTE

MODERAÇÃO

MICHELE MAMEDE - JORNALISTA

quarta-feira, 24 de março de 2021

Estreou a curta-metragem "Explorar os seus limites"



Estreou a curta-metragem "Explorar os seus limites"; filme inspirado a encorajar as pessoas a ver áreas familiares e locais de maneiras desconhecidas, mostrando como grandes aventuras podem acontecer da sua própria porta.

As restrições da Covid-19 na Escócia contornaram o detentor do recorde mundial, Mark Beaumont, e o fundador da Bikepacking Scotland, Markus Stitz, pensando sobre onde estão os limites de nossas autoridades locais. 

"Pensámos nas rotas de ciclismo de cascalho próximas à circunferência de cada autoridade local, já que as atuais restrições de permanência em casa na Escócia só permitem exercícios que começam e terminam no mesmo lugar (de preferência em sua casa, mas também até 5 milhas do limite de sua área de autoridade local). Para começar, mapeámos 23 rotas que variam de 30 milhas a 315 milhas, todas incluídas na coleção abaixo. Obrigado também a Craig Thompson por mapear uma rota ao redor de Aberdeen.

Uma nota de cautela. Diferente de outras rotas da Bikepacking Scotland, só pudemos testar a rota de Edimburgo e Midlothian. Para todas as outras rotas, usamos Komoot e Open Cycle Map para mapeá-las e analisá-las em um computador, e também usamos nosso conhecimento de outros passeios ou projetos como mapear as trilhas de cascalho de Perthshire, John Muir Way ou rotas no Cateran Ecomuseum.

Ao pedalar a rota de Edimburgo no inverno, tivemos que desmontar e empurrar várias vezes, e também fizemos alterações na rota durante a pedalada, então, esteja preparado para isso. Aconselhamos você a usar o bom senso, levar kit sobressalente suficiente e seguir os protocolos de emergência.

Essas rotas são sugestões para inspirar suas próprias rotas. Você pode nos enviar feedback onde eles podem ser melhorados. Alguns conselhos ainda estão faltando na coleção, então se você quiser mapear e compartilhar uma rota, use o feedback abaixo para entrar em contato."


quarta-feira, 17 de março de 2021

Cicloviagem - uma nova revista, bonita, de qualidade gráfica, bons conteúdos e gratuita


Experiências de viagens, testemunhos, belas fotos, alimentação, conselhos para iniciantes...
A revista apresenta-se assim:
"Somos uma revista em movimento.
O nosso objetivo é disseminar um tipo de turismo e vida alternativa onde interagimos de forma responsável e consciente com o meio ambiente e as pessoas que o habitam.
As viagens de bicicleta como forma de turismo mas também de vida.
Procuramos mostrar e aproximar o leitor das diversas formas de pedalar pela mão dos próprios viajantes, contando histórias, mostrando fotos, dando conselhos ou ilustrando de alguma forma a experiência do ciclista.
A periodicidade:
A revista terá três edições anuais publicadas a cada quatro meses em formato digital e será totalmente gratuita.
Gestão:
Será autogerenciado e colaborativo. Qualquer pessoa que desejar participar pode enviar seu material para ser considerado para publicação.
Difusão:
Será divulgado de forma gratuita e gratuita, podendo ser publicado em redes sociais, páginas da web e até impressos."
Parabéns à equipa!
Vítor Franco


sexta-feira, 12 de março de 2021

Santarém está muito atrasada. Temos uma vitória a conquistar!

Só um país atrasado entende que as mulheres não devem usar bicicleta porque se excitam, as estradas são para os carros, as ruas só para quem não tem mobilidade reduzida, ou as bicicletas são transporte de pobre!

As pessoas com deficiência também têm direito à mobilidade e ao desporto. As crianças também têm direito à mobilidade e à segurança.

Junto fotos tiradas em Santarém, foto de estacionamento de bicicletas junto a estação ferroviária na Áustria [quando fiz o rio Danúbio] e uma revista sobre ciclismo adaptado, de leitura e download livre e gratuito que podes fazer clicando aqui.

Realmente, Santarém está muito atrasada. Temos uma vitória a conquistar!







Vítor Franco



quarta-feira, 10 de março de 2021

A primeira lei de Newton, a Escola Industrial e o Mercado Municipal



Limpava os meus livros do 12.º ano, tirado à noite, enquanto trabalhador / estudante, na saudosa Escola Industrial, hoje Ginestal Machado, quando dou de caras com o livro de Física.

Este ato de arrumar e limpar livros é prazeroso! Abandono o presente, perco-me no passado, esvoaço em lembranças esquecidas, percorro momentos como filmes em tela…

Trabalhava em turnos rotativos, já era pai, sindicalista, fazia voluntariado associativo… Foi quando chegou a saudosa e para mim inesquecível professora Berta[i]… Nasceu uma paixão, não pela professora, mas pela disciplina de Física que tão bem lecionava… Paixão que criou a ansiedade de saber mais, de compreender mais, melhor…

Quanto mais sabemos, mais percebemos o que imensamente nos falta saber!

Newton “tirou-me do sério”… Com ele encontrei o entendimento de que as leis da Física se aplicam também ao comportamento humano e à sociedade. Com ele e a filosofia de Marx, a compreensão do mundo fez mais sentido!

Cada um, ou uma, de nós é como um grão de areia numa imensa praia – mas não há praia sem grãos de areia! É assim todo o nosso planeta, toda a via láctea, todo o imenso universo…

Há uma lei de Newton que aprecio em particular: a primeira lei, eu chamo-lhe simplesmente a “lei do movimento uniforme e retilíneo”. Mais ou menos isto: um objeto estará em repouso ou prosseguirá em movimento retilíneo e uniforme se sobre ele não atuar nenhuma força ou se o resultante das forças que atuarem for igual a zero.

- Como se liga essa lei ao Mercado Municipal, perguntarão?

- Pela primeira vez, neste mandato autárquico, houve forças que atuaram sobre o movimento “retilíneo” [de privatizações] da Câmara! Houve iniciativas cidadãs, Cartas Abertas, pronunciamentos variados na comunicação social, movimentações na comunidade… Essas iniciativas e esses pronunciamentos agiram como vetores de forças sobre o objeto: a decisão de Ricardo Gonçalves de concessionar o Mercado a privados.

Muitos grãos de areia decidiram mover-se e a praia alterou-se. A consciência e a palavra de cada grão induziu uma ação e reação de outros grãos, qual terceira lei de Newton! Todo esse “pequeno” sobressalto físico e cívico agiu sobre a decisão da Assembleia Municipal originando uma força de reação em oposição ao movimento do objeto e obrigou-o a parar!

Abandono o presente e reencontro-me com o passado, aquele momento em que pergunto à professora Berta que livro me aconselharia para continuar a ler física e em particular astrofísica.

- “Um pouco mais de azul[ii], de Hubert Reeves[iii], se bem me lembro...

Saiba, cara leitora ou leitor, o que escreve Hubert na dedicatória: “este livro é dedicado a todas as pessoas maravilhadas com o mundo”!

Maravilhe-se, seja um grão de areia em sobressalto!

Vítor Franco


[i] Já não me lembro do sobrenome da professora Berta…
[ii] O título da edição portuguesa reproduz um fragmento do poema “Quase”, de Mário de Sá Carneiro.
[iii][iii] Hubert Reeves, “Um pouco mais de azul”, Lisboa, Gradiva.

segunda-feira, 8 de março de 2021

"A BICICLETA COMO UM VEÍCULO FEMINISTA" - VIVA O 8 DE MARÇO!

Cristina Spínola afirmou o empoderamento da mulher, o direito à igualdade, à mobilidade global e fez uma volta ao mundo em bicicleta que pode ver aqui numa entrevista televisiva.


"Igualdade e diversidade" é um vídeo, com a participação da Cristina, que afirma esse empoderamento feminino, a igualdade e celebra o 8 de Março, uma ação da Concejalía de Igualdad y Diversidad del Ayuntamiento de Las Palmas de Gran Canaria que pode ver clicando aqui.

Rute Norte tem um site que merece a nossa visita. Ativista cultural e dos direitos dos animais, é uma credenciada artista plástica "viajou pelo Quénia, Austrália, Amazónia, Patagónia, Gronelândia, Timor, Vietname, São Tomé e Príncipe, Índia, Egipto, Tunísia, China, Nova Iorque, Seychelles, fez as 9 ilhas dos Açores em bicicleta, e claro, viajou por vários países na Europa."

Rute Norte, de bicicleta pela China

Outra mulher de garra é a Tânia Muxima. Sim é uma mulher sem medos mostrando que é o sexo forte. São imensas as aventuras da Tânia, elas podem ser vistas na sua página de Instagram clicando aqui. E quando a Tânia andou a fugir à polícia de bicicleta no Cazaquistão eh eh eh... 


Passando a uma abordagem académica, a relação entre o avanço do feminismo e a bicicleta é dada por Vivian Machado. No "Seminário Internacional Fazendo Gênero" Vivian apresentou um trabalho de que cito:


"A mulher tem uma ligação de libertação à bicicleta. Sobre a mulher recaiam impedimentos morais da época, como a proibição de associações de mulheres ciclistas e com a criação de mitos como uma possibilidade de atrofiação do útero ao pedalar...

A bicicleta é um instrumento utilizado pelos movimentos sociais atuais e pelo debate feminista como uma representação da conquista de direitos e como uma extensão do próprio corpo que busca retomar para si a independência da mobilidade na cidade.

Pedalar se apresenta como um ato político, de reivindicação do espaço público como de direito aos sujeitos. Dentre as apresentações de falas e debates atuais, o feminismo e o cicloativismo têm muito a caminhar ainda juntos
..."


Partilho aqui todo o texto, que é público e recomendo. Clique aqui para ler.

A todas obrigado pelo seu exemplo!

Vítor Franco

quarta-feira, 3 de março de 2021

Fanzine de mulheres em bicicleta

Por vezes caímos na tentação de relatar as audaciosas cicloviagens deixando a sensação: "isto não está ao meu alcance".

A publicação de hoje é muito gira. Ela tem ilustrações interessantes e trata o início da "relação" entre a mulher e a bicicleta, é o abc autêntico para a mulher que nunca andou de bicicleta. 

1. Aprendendo a andar de bicicleta, 2. Pedalar em dias de chuva, 3. Seguranças nas vias, 4. Registo de bicicleta, 5. Recomendações, 6. Sinalização, 7. Como prender a bicicleta.

Clique aqui e leia a revista.







terça-feira, 2 de março de 2021

A velha das laranjas, as galegas e o eletricista

A vendedora de laranjas - Maria de Lourdes Melo e Castro

Olhei a velha… “em frente de um cesto com laranjas e limões, uma vendedora idosa, sorridente (…) exibe uma laranja na mão direita. Veste blusa branca e tem na cabeça um pano castanho alaranjado com várias dobras, deixando parcialmente descoberto, sobre a testa, o cabelo branco, penteado para trás…”

Dirijo-lhe palavra:

— Olá, bom dia! Como está a senhora?

— Bom dia senhor Vítor, vou bem, olhe, como Deus manda, sabe, ando nervosa, sabe, assinei a carta à Câmara, sabe… Já viu? Quererem fazer-nos uma coisa destas com esta crise… E a gente já velhas? Já viu? Então o que vai hoje?

— Compreendo-a, há muitas mais pessoas que vos compreendem, dia 8 fica decidido, vamos ter esperança… As laranjas este ano apodrecem rápido… Quero dois quilos, tenho aqui saco…

— Traz ovos frescos das suas galinhas? Se tiver quero uma dúzia…

— Sim, aqui estão… Você, fale lá homem, não se acanhe…

Pago.

Procuro a vizinha da velha, chamo-lhe a mulher das cebolas — mas ela gosta! Ainda se lembra da foto que lhe tirei no mercado de Rio Maior, pausava amamentando um petiz agora “homem de ir à tropa”. Homem feito, ajuda a mãe no mercado e na horta… O pai ficou desempregado e faz biscates nas obras… Cuida também da horta; que bela horta, sim, que eu já a vi, de lá vêm as cebolas, não há cebolas como aquelas…

Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira.


Encontro-a, meto conversa com a vizinha da velha, a mulher das cebolas… Pergunto-lhe pela irmã, sim, também já tenho uma foto dela, é uma mulher muito bonita…

— Então a sua irmã? Hoje não veio mostrar a carinha linda?

— Ah!? Senhor Vítor, não seja malandro, olhe que eu também não sou feia… A galega mais nova ficou a apanhar agriões e nabiças para fazer molhos para vendermos amanhã… Quer que lhe guarde?

— Sim, quero, um molho de cada. Já sabe da Assembleia Municipal, não sabe?

— Sei pois, também assinei aquele papel. Sabe senhor Vítor, há gente que não se lembra da pobreza, falam, falam, mas não ligam aos pobres, ao nosso sustento, sabe? O senhor está do nosso lado não está?

— Claro que sim, então devia estar de que lado? As senhoras são a vida da terra… Vou lá defender que não haja concessão aos privados, que a gestão seja municipal e nós possamos fiscalizar…

— Pois, eu li o que o senhor escreveu com os seus amigos… Sabe, olhe que está bem, sabe senhor Vítor, eu vou ver pela internet, é segunda-feira dia 8 às 8 da noite não é?

— Sim, com isto do Covid a Assembleia Municipal é pela internet… Vá, até amanhã. E traga a galega nova que ela continua gira…

Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela.

Sorrimos os dois…

A mãe e o pai tinham vindo lá de cima, da Galiza, com as duas filhas, à procura de melhor sorte nas Minas do carvão de Rio Maior. O fim da mina, em junho de 1969, ditara-lhes o fim da esperança… O homem amofinou, entregou-se à taberna… Arribou e voltou ao campo… Morreu novo, coitado! Ficaram a mãe e as filhas, sozinhas, sem casa e sem pão…

José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.

Agarraram-se à amanha da horta e vendem no mercado… Amanhã não me posso esquecer dos agriões, são bons para o ácido úrico e estes não trazem aqueles químicos… E vou comprar mais laranjas à velha… Ela até gosta que eu lhe chame a velha das laranjas. Às vezes responde:

— Diga lá velho eletricista?

Pois é, dia 8 lá estarei, [na Assembleia Municipal] a defender o pão delas, o delas e o meu porque todos juntos somos uma comunidade… Sim, elas também são gente com o coração à esquerda!

 

Vítor Franco


Créditos de fotos: Vítor Franco, Museu José Malhoa, 2020.

Quadros:

Maria de Lurdes de Mello e Castro, “A vendedeira de laranjas”, 1929, óleo sobre tela.

Artur Alves Cardoso, “Uma pausa forçada”, 1913, óleo sobre madeira.

Henrique Medina, “Rapariga da Galiza”, (cerca de 1948), óleo sobre tela.

Escultura:

José Moreira Rato, “Sem casa e sem pão”, 1919, mármore.

Texto ficcionado.

Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!

O bairro do Pereiro foi o da minha criação, assim diria a minha mãe. A senhora Alice tinha uma mercearia no Largo dos Capuchos, mais conheci...