terça-feira, 12 de maio de 2020

Crónica de um peregrino ateu

foto a partir do mirador do pico de Stª Catalina
La Fuente é uma aldeia “perdida” nos Picos da Europa. É daquelas aldeias amorosas que te convocam para a ternura de um tempo sem tempo de partida. Fiquei em dívida com La Fuente. A aldeia foi meu repouso num dia frio de junho de 2019. Irei voltar a La Fuente, talvez já não seja de bicicleta...
Em San Vicente de La Barquera deixei o Caminho do Norte a Santiago, que tinha começado em Hendaye na fronteira da França com o País Basco.
Tomei fala com os técnicos do Parque Natural, aconselharam fugir da montanha, os trilhos do Caminho Lebaniego estavam perigosos, a chuva caía com frequência, optar por estrada de alcatrão, seguir pelo desfiladeiro era a opção segura.
Rio Deva
Ainda em San Vicente, no mosteiro franciscano de Nuestra Senhora de los Angeles, colhi a credencial liébana e um diálogo sereno com um frade de voz pausada e agradável. Partilhou um pouco da sua vivência, do seu rumo, e do sagrado culto à cruz no Mosteiro de Santo Toribio de Liébana… Perguntou-me por Fátima… Não é fácil a um ateu em peregrinação a Stº Toribio, um dos quatros lugares sagrados da igreja católica, explicar-se como ateu. Contei-lhe que nasci ao lado de Fátima, em Reguengo do Fetal… Acolheu com serenidade a minha consciência não religiosa [não cheguei a contar da minha opção marxista] e entre diálogos e rumos filosóficos a conversa tomou o rumo do rumo a seguir de bicicleta…
De manhã bem cedo, tinha partido da linda Santillana del Mar, onde tinha pernoitado num dos albergues do Caminho do Norte a Santiago de Compostela. Ao fim da tarde cheguei à aldeia de La Fuente.

O albergue de peregrinos estava despovoado de gente. Todas as portas estavam abertas; são assim os lugares confiantes, os que serenamente recebem sem trancas nem desconfianças.
O silêncio entrecortado pelo vento, o canto das aves, o palrar das folhas e o cantar das águas de um pequeno rio [que por aqui lhe dão nome de arroyo], construíam tranquilidade. O nevoeiro cedo tomou conta do vale.
O guarda do albergue era um jovem, talvez por uns 30 anos, tinha vindo de longe, de muito longe, para ali chegar. Meti conversa, o seu castelhano era fluente e o conhecimento dos Picos profundo. Pedi-lhe conselhos para o caminho vindouro.
Ele arrastava as palavras como se cada sílaba lhe fizesse muita falta para preencher cada minuto. Muito calmamente, o jovem búlgaro erradicado na aldeia de La Fuente explicou-me o caminho para subir ao mirador de Stª Catalina e como chegar mais facilmente a Potes. A explicação minuciosa incorporava tanta informação que à medida que avançava crescia o meu receio de me perder na montanha. Pedi-lhe para esperar e fui buscar o meu caderninho. Olhou-me calma e compreensivamente recomeçou, repetindo pausadamente cada passo.
O jovem convidou-me para jantar, mas o almoço de uma terrina de fabada asturiana ainda se mantinha, agradeci com simpatia. Andava como falava, como que caminhando naquele nevoeiro que frequentemente me acompanhava. A sua figura aparecia e desaparecia no albergue como no nevoeiro ou nas nuvens daquelas serras altas: silenciosa e rapidamente. Também ele tinha o seu rumo: guardador de sonhos da mãe natureza.
Manhã cedo retomei o meu rumo, Potes e Stº Toribio.
Potes é uma linda vila. Dali ao mosteiro é uma “pequena” subida. O joelho esquerdo, já inchado, queixava-se em cada pedalada. Lá cheguei. Encostei a bicicleta e caminhei um pouco. Na igreja fui recebido por um padre que me mostrou a cruz que se consideram sagrada por ter parte da madeira da cruz onde morreu Cristo. Carimbei a credencial e comprei o diploma…
Stª Toribio
Nessa noite dormi no albergue de Potes, paguei 5, cinco, euros. Escolhi uma cama mais junto ao rio Deva. O calmante som das águas fizeram-me recordar as conversas do dia com o frade e o jovem búlgaro. Tinha sido um belo dia de 8 de junho. No dia seguinte seria a subida aos Picos, nova etapa, rumo à natureza.
Vítor Franco
Crónica publica no Jornal online Mais Ribatejo, https://maisribatejo.pt/ 
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