quarta-feira, 24 de abril de 2024

Há tanto abril para construir!

Caminhava a passos algo incertos, o seu corpo parecia instável, alto e magro, a fazer-me lembrar o bom gigante Torres que jogou no Benfica, quase esquelético, vem direito a mim.
– Senhor, senhor, preciso que me ajude, diz-me.
– Bom dia, diga o que se passa, indago eu.
Procura algo nos bolsos das calças, de lá para os de um casaco velho, mas limpo, encontra no bolso de dentro, parecia um spray para a asma.
– Senhor, preciso que vá comigo à farmácia pedir este medicamento… Sabe, senhor, eu não lhe quero pedir dinheiro, o senhor paga na farmácia, com o protocolo da Misericórdia de Lisboa é pouco…
Nunca tal tinha tido tal abordagem… O “Torres” continuou.
– Senhor não é preciso dar-me dinheiro, senhor eu preciso deste medicamento…
Disse-lhe que ia com ele à farmácia e pagaria a parte não comparticipada do medicamento.
– Para onde é a farmácia?
– Senhor, é ao pé do Egas Moniz, vamos senhor…
– Amigo, eu vou em sentido contrário, temos já ali uma farmácia… Vamos a esta.
Faz uma cara de angústia…
– Senhor, senhor, essa não tem protocolo, senhor eu não quero que me dê dinheiro, vá comigo senhor…
– Quanto lhe custa o medicamento se você for à farmácia que diz?
– É muito senhor, são quatro euros e meio…
Olhei para o “Torres”, às tantas doía-me a consciência de não ir com ele, às tantas era mais uma canção de pedir dinheiro para a sua dose de droga… Voltei a olhá-lo com atenção…
– Senhor, senhor, venha comigo…
Puxei da minha carteira e tirei uma nota de cinco euros.
– Eu tenho de seguir em frente, disse-lhe. Leve a nota e compre o medicamento.
Cada um seguiu o seu caminho, parei, olhei para trás, lá ia ele em passo apressado, inseguro… Lembrei-me da canção do Rui Veloso…
“… Gingando pela rua/ Ao som do Lou Reed/ Sempre na sua/ Sempre cheio de speed/ Segue o seu caminho
Com merda na algibeira/ O Chico Fininho/ O freak da cantareira
Chico Fininho…”
Há tanta doença por reparar, tanta miséria por acabar, em tanta gente que vegeta na vida ou vive na desesperança, em gente que deixou de ter força de trabalho para vender…
Há tanto abril para construir! É o nosso objetivo, construir abril! 
Vítor Franco
(Publicado no Jornal Mais Ribatejo, veja aqui)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!


O bairro do Pereiro foi o da minha criação, assim diria a minha mãe.

A senhora Alice tinha uma mercearia no Largo dos Capuchos, mais conhecido como o Largo do cemitério. De lá, trabalhando sem descanso, criou sozinha os três filhos.

O bairro era um lugar cheio de vida, cheio de crianças e jovens. O Largo do cemitério era o centro de todas as vivências. Era lá que jogávamos à apanhada, ao lenço, (…) à bola; de lá, por vezes, tínhamos de fugir à polícia quando o encarregado do cemitério a chamava. Queixava-se ele, e com talvez alguma razão, que a bola quando chutada por alto e entrada no cemitério partia objetos. Uma vez por outra tivemos de fugir para dentro do cemitério mesmo de noite, era uma aventura nos tempos da ditadura…

O 25 de abril teve um enorme impacto no bairro. Em primeiro lugar ele trouxe um aumento do bem-estar e do poder de compra das pessoas, com consequente benefício para a mercearia da Alice. A minha mãe passou a ir muito mais vezes aos armazéns numa velha carrinha Opel Kadett e eu passei a trabalhar mais na mercearia, o que era um problema sério para mim.

Não raras vezes a rapaziada vinha chamar-me, “Vítor, anda jogar à bola”… Grande dilema, quase sempre a bola ganhava e a mercearia ficava ao cuidado do freguês que chegasse. Aí, “Vítor, anda aviar-me”, lá ía eu… Depois voltava à bola… O problema é que a Alice detestava que a mercearia ficasse à vigilância popular, vai daí a rasoira de madeira do feijão, do grão ou do milho fazia serviço alheio ao seu fim de fabrico… Costumamos dizer bons tempos não é?

O bairro tem uma estrutura urbanística diferente do planalto, ruas retilíneas com perpendiculares, nele instaurou-se um acampamento romano como muito bem explica José Augusto Rodrigues em vídeo de O Ribatejo [veja aqui]. O bairro do Pereiro ter-lhe-á tomado nome por ser lugar de macieiras de peros, não se sabe…

A Porta de Valada já não existe, mas, a estrada para o Outeiro da Forca era a saída para as barreiras onde cheguei a apanhar pintassilgos e carrascos para a fogueira das festas de S. João. Lugares de memória…

É por esses lugares que continuo a passar, pelo menos quando faço os meus treinos de corrida. O Largo do cemitério foi alcatroado e agora tem muito mais carros do que crianças. A mercearia do Rato e da Alice também são recordações… É com alguma tristeza que se vê a queda de casas e de gentes.

Recentemente foi necessário cortar uma estrada por mais uma derrocada de um lar abandonado à sua ruína. No Pereiro as casas morrem com as pessoas… O Pereiro como a judiaria, a mouraria, outros lugares que se escapam entre os dedos da memória e da vida…

Seria interessante reavivar a memória das vivências de Santarém, a presença judaica e a perseguição aos judeus, ou os 400 anos de presença islâmica cuja mesquita estaria onde é hoje a Igreja de Santa Maria das Alcáçovas. É que a nossa identidade, dita de ribatejana, é uma agregação de povos e culturas. Mas isso faz-se com políticas públicas e uma gestão municipal e da freguesia que tragam a diversidade do passado ao presente.

Tudo isto por lembrança do Pereiro, onde as casas morrem com as pessoas!

Vítor Franco

REGRESSO DA GALDÉRIA

A galdéria vai para casa. O problema é que fez uma birra, quis ir num saco almofadado. A menina é exigente, uff, não é fácil aturá-la... Bem...