domingo, 30 de junho de 2024

Há democracia com tantas pessoas sem abrigo?

Foto da Av. 5 de outubro, Lisboa, tirada a 25 de junho de 2024

Estávamos em convívio na sede da SRO, em Santarém. Um dos atletas da nossa equipa, Desafios Positivos D+, tinha feito anos e, como é habitual, juntámo-nos para festejar.

Cerca das 21h um senhor desconhecido entra na sede e dirige-se à sala de convívio. Perguntámos se precisava de alguma coisa e que desejava.

– Tenho fome, disse.

– Sem problema, disse-lhe. Mandei-o sentar-se e servi-lhe dois pratos da nossa comida.

Puxei conversa, indaguei de onde vinha e porque estava por cá. Disse-me que é português e foi emigrante. Regressado a Portugal a vida não lhe terá corrido bem. Vagueava de terra em terra procurando a sorte que lhe tinha fugido. Estava também sem abrigo, considerava-se um refugiado no seu próprio país o que ele próprio era uma revolta pois dizia ser “um homem de Deus”.

Enquanto comia discorreu sobre os outros pobres, ou outros sem abrigo que considerava uns privilegiados até porque dormiam em albergues ou tinham apoios sociais. Criticou os horários dos albergues noturnos que obrigam à saída matinal e a sua disciplina. Falou da prostituição entre pessoas sem abrigo, em troca de algum para a droga… Recordei os fins de 2007, início de 2008, quando participei no Porto numa equipa que elaborou um vasto trabalho de campo e que teve fim feliz em vários projetos-lei do Bloco de Esquerda e no “Livro Negro, sobre a pobreza no distrito do Porto”, cuja capa é precisamente o Albergue Noturno do Porto. Recordei-me da visita a este Albergue e da dedicação que as e os funcionários dedicavam a estas pessoas. Alguns dos problemas dos sem abrigo eram a perda da documentação, a ausência de morada fixa para ter eficaz acesso aos subsídios e apoios sociais ou – imagine – a burla que alguns empresários lhes faziam que, em troca de parcos euros, usavam a identidade dos sem abrigo para negócios escuros; depois, as pessoas sem abrigo eram vítimas de problemas judiciais e acusados de crimes que em todo desconheciam.

Voltando ao “refugiado”, para a sua dormida, nessa noite, sugeri que contatasse os Bombeiros Voluntários, talvez lhe pudessem dar algumas indicações. No fim de comer saiu, sem mais… Regressei ao convívio.

Este episódio fez-me lembrar outras situações de pessoas sem abrigo que tenho visto a dormir em Santarém. Confesso que é das situações que mais me incomoda, em particular se forem idosos, talvez por isso volto ao tema neste jornal. Já vi pessoas a dormir em entradas de bancos onde se situa o multibanco, em recantos mais abrigados de prédios e até em casas abandonadas. Tenho a sensação de que este problema se tem vindo a agravar, transportando consigo as restantes exclusões sociais.

Também me incomoda que a Assembleia Municipal tenha recusado a proposta da deputada municipal Ana Eleutério para melhorar as condições em que se dá apoio municipal ao arrendamento. Em rigor, “é praticamente inalcançável para quem possa necessitar de recorrer ao mesmo”. O apoio municipal existe para quem tenha até 509 € de rendimento mensal e more no concelho há mais de três anos, ou seja, é um subsídio dado a quase ninguém. Incomoda-me que nenhuma das forças que tem vereadores da Câmara tenha votado a favor! Enfim, cada eleito é livre de votar como quer… 
Vítor Franco
(Publicado no Jornal Mais Ribatejo, veja aqui)

domingo, 16 de junho de 2024

O homem do chafariz

Chafariz da Praça da Armada - 1661, créditos da Câmara Municipal de Lisboa.

Caminho pela rua, sigo tranquilo e pensativo, tinha estado com colegas que trabalham por turnos rotativos…. Dormir na vez das horas que o ditame laboral impõe, ver filhos e filhas quando dormem, deitar na cama ainda quente de pessoa já ausente…

São umas dez horas da manhã, tínhamos estado numa esplanada a tomar café, os colegas tinham trabalhado de noite, a cafeína ajudava, mas as palavras não poderiam ser longas que os olhos tendiam a fechar-se. Tinha tomado notas para o sindicato apresentar à empresa, pensativo recordo os meus tempos de onze anos em turnos, coisas do passado, quando começamos a envelhecer estamos sempre a falar do passado…

Caminho, pensativo…

Ao chegar ao chafariz da Praça da Armada vejo um homem deitado em cima de um papelão, tapado com um cobertor, resguardado do vento pelos lados curvos das guardas laterais. Não parece ter frio, quiçá o calcário lioz lhe devolve o calor que o vida lhe nega. Deve ter uns 50 anos, parece bem apresentável, paro a olhar para ele… O homem sente a minha presença e levanta a cabeça como que a indagar o que queria eu dele… Que poderia eu dizer?

Sabe-se que há gente a dormir na rua que, embora trabalhe, não consegue pagar uma renda, tomam banho e guardam roupa no lugar onde vendem barato a sua força de trabalho – tão barato que lhe rouba a dignidade de um repouso humano…

Que poderia eu dizer ao homem sem cama que dormia no chafariz sem água? O chafariz está datado de 1845, a dignidade desta pessoa também parece assim estar, 1845… Desta? Não, de tantas pessoas que dormem nas ruas nesta cidade onde são muitas mais as camas vagas para repouso de turistas… Camas sem pessoas e pessoas sem cama…

O chafariz não tem água, não tem peixes, registado com o número dez, regista também o abandono da magnífica rede de distribuição de água em chafarizes que acompanhou outras obras magníficas como o aqueduto… Transeuntes passam por ali e ignoram o chafariz sem água, ignoram também o homem sem cama que lá se acolheu, alguns turistas param e tiram fotos a jeito de não registar o sem abrigo que fez do monumento o seu abrigo sem água.

Que poderia eu dizer ao homem que me olha? Não sei o que lhe dizer, aceno a cabeça em jeito de bom dia, recomeço o caminho, pensativo…

Vítor Franco
(publicado no Jornal O Ribatejo, veja aqui)

REGRESSO DA GALDÉRIA

A galdéria vai para casa. O problema é que fez uma birra, quis ir num saco almofadado. A menina é exigente, uff, não é fácil aturá-la... Bem...